Assume não ser um puro número 9, mas marcou muitos golos ao longo da carreira. Viveu os momentos altos nos dois campeonatos conquistados com a camisola encarnada e ao marcar o tento que deu o último troféu da Fiorentina até aos dias de hoje. Tem 256 golos (Benfica 165, Boavista 31, selecção 29, Fiorentina 20, Braga 6, Blackburn 4), mas quer continuar a fazer balançar as redes adversárias. Nas duas últimas épocas teve passagens discretas por Sp. Braga e Blackburn mas, aos 37 anos, continua com vontade de jogar. Quando abandonou a Luz, Vieira deixou-lhe a porta aberta para regressar. Mas o avançado não abre o jogo e escolhe muito bem as palavras quando fala do clube do coração. O futuro continua muito indefinido, por isso o encontro com o goleador serviu para recordar os melhores momentos da sua carreira.
Estreia-se como profissional (Boavista) aos 18 anos e só precisa de 17 minutos para fazer um golo. Como foi?
Lembro-me bem, é sempre um episódio marcante, e coincidiu a estreia como profissional e o primeiro golo. Tinha acabado de chegar do mundial sub-20 e fui aposta do Manuel José. Entrei ao intervalo num jogo que estava difícil e tive a felicidade de fazer um golo importante nessa eliminatória (vs. Mypa), e fiquei muito contente porque era o meu primeiro jogo. Que mais podia querer numa estreia? Era o que ambicionava.
Qual o golo que mais o marcou?
Talvez o que marquei pela selecção em Alvalade contra a Espanha, no Euro-2004. Foi muito importante, só a vitória interessava para seguir na prova organizada por nós, e iria causar um sabor muito amargo se fôssemos eliminados na fase de grupos. Era um golo que o estádio e o país inteiro esperavam, eu consegui e foi uma explosão de alegria muito grande.
Depois, na Fiorentina, mais uma estreia em grande, com um hat-trick.
Também consegui conciliar a estreia com golos, num jogo para a Taça, fora, com a Salernitana. Foi muito bom: três golos nos primeiros 45 minutos, não tenho a certeza mas penso que foram três assistências do Rui Costa. Foi uma estreia muito boa e também aí lembro--me de ser muito elogiado pela imprensa e pelos colegas. Fiquei muito feliz por mais uma estreia auspiciosa.
E que recordações guarda da final da Taça de Itália?
Depois disso, infelizmente, a Fiorentina não conseguiu vencer outro troféu. A final era a duas mãos, conseguimos vencer fora por 1-0, tínhamos tudo para ganhar a Taça em casa. Estava no banco, o Mancini era o treinador (tinha chegado a meio da época para substituir o Fatih Terim). Ao intervalo perdíamos 1-0, entrei e consegui marcar o golo do empate que nos deu o título. Foi uma explosão de alegria no estádio, um título que os adeptos perseguiam há muito. Tínhamos uma excelente equipa na altura, capitaneada pelo Rui Costa (na época seguinte, saiu para o Milan). Fizemos uma excelente época.
O Rui Costa foi determinante na sua passagem pelo clube?
Sim, acima de tudo na decisão de ir, depois do Euro-2000, quando tinha mais propostas. Era um amigo, iria ajudar-me na adaptação, e tê-lo na equipa era uma mais-valia. No meu primeiro ano foi muito importante a ajuda dele e da família. Depois foi para o Milan e, no segundo ano, estava totalmente adaptado, já me conseguia virar sozinho.
A sua relação com o Mancini era boa?
Não foi a melhor em termos técnicos. Fui contratado com o Fatih Terim, mas ele saiu a meio da época. Quando o Mancini chegou, eu estava a fazer um bom campeonato, a jogar sempre, e de um momento para o outro optou por me meter no banco. Depois, na abertura do mercado em Janeiro, estive para ir para o PSG porque a Fiorentina queria um jogador deles e eu serviria de moeda de troca. Falei com o treinador e disse que queria ficar porque me sentia bem. Na segunda metade da época alternei entre o onze e o banco, e depois consegui o tal golo decisivo que deu o primeiro título de treinador ao Mancini. Portanto, nunca houve nenhum problema de maior e a relação pessoal sempre foi muito boa.
Como foi viver o processo de falência da Fiorentina?
Depois da vitória na Taça, fomos de férias. Entretanto, o Rui Costa e o Toldo foram vendidos. O Mancini acaba por sair e, a partir daí, já estava tudo mal, os jogadores não recebiam, ficámos com sete ou oito meses de ordenados em atraso e, consequentemente, descemos de divisão. Na passagem para o meu terceiro ano é que o clube declarou a falência. Foram momentos difíceis porque ninguém conseguia prever o futuro, suspeitávamos que algo de grave podia acontecer. Até que veio a notícia da falência, que o clube iria acabar e os jogadores ficariam livres. Foi triste, porque é um clube com muita história e tradição.
E a convivência com os adeptos complicou-se muito?
Estavam revoltados com tudo e todos, não é uma situação fácil. São muito apaixonados e viveram meses de sofrimento. Houve alguma violência com adeptos mais furiosos que tentaram incendiar a casa do presidente em Florença, devido à má gestão. Foram dias complicados. Daquela altura saímos todos, equipa técnica, médica, roupeiros, tudo. Começou tudo de novo. Só ficou o Di Livio, que tinha 36 ou 37 anos.
Regressa à Luz apesar de ter mais propostas. Porquê?
Esse ano custou um bocado a passar, mas sentia-me bem em Florença, já tinha feito amigos lá e gostava do campeonato italiano. Vi-me livre para decidir o meu clube, sem que tivessem de comprar o meu passe. Tinha saudades do Benfica e, quando houve essa oportunidade, não hesitei em voltar para o clube de que gosto. Decidi voltar a uma casa que já conhecia e de que tinha saudades.
É apresentado com o estádio cheio. O que sentiu no regresso?
Acima de tudo, um grande orgulho, alívio até, por voltar para onde queria estar. Foi no jogo de apresentação [contra o Grémio] e uma parte da bancada já não existia por causa da construção do novo estádio. Foram momentos muito marcantes para mim. Fui muito bem recebido, era sinal que as pessoas estavam a apreciar o meu regresso.
Luís Filipe Vieira disse que tinha custado "seis horas". As negociações foram difíceis?
Não. Tinha outras propostas, mas prometi ao LFV que, quando saísse da Fiorentina - porque a falência era uma questão de dias -, não me ia comprometer com ninguém antes de falar com ele. E foi o que aconteceu. Sentei-me com o presidente para ver se era possível o meu regresso e assim foi. As negociações não foram muito difíceis.
Quais as melhores memórias que guarda do Benfica?
Infelizmente, nesse período não fui tantas vezes campeão como gostaria, apenas duas: uma com o Trapattoni, outra com o Jorge Jesus. O clube passou por uma reestruturação total no futebol, houve altos e baixos, anos bons e outros nem tanto. Cruzei-me com excelentes jogadores, mas tenho pena de não ter tido nesses anos equipas tão boas como agora. Os últimos plantéis, comparados com esses da altura, são melhores, mas é assim o futebol. O clube procura sempre melhorar.
Com quem se entendia melhor dentro de campo?
Com o Brian Deane, a minha produtividade subiu, fiz mais golos a jogar com ele. Era um jogador que, dada a estatura e forma de jogar, se complementava com a minha. Com o João Pinto também: apesar de não ser um avançado puro, jogava nas minhas costas. O Brian Deane foi dos avançados com quem mais gostei de jogar, puxando a brasa à minha sardinha. O Miccoli também, era um excelente jogador; o Mantorras, apesar de nunca ter feito uma dupla regular com ele. Mas, acima de tudo, o Deane. Quando fomos campeões jogava eu, o Sokota, o Karadas. Foi nos últimos anos em que o Benfica teve jogadores, se olharmos para os nomes, excelentes: Saviola, Cardozo. Gostei muito de jogar com eles.
Também marcou os primeiros golos no novo Estádio da Luz, ficando para sempre na história do clube.
Ganhámos 2-1 ao Nacional de Montevideo na inauguração do estádio e eu marquei os dois golos. Voltava nesse dia aos relvados, depois de uma lesão no joelho na época anterior. O meu regresso coincidiu com o primeiro jogo da nova catedral. Lembro-me de, antes do jogo, ver na TV reportagens com adeptos do Benfica, e muitos deles escolhiam o meu nome quando lhes perguntavam quem gostavam que marcasse primeiro. Fiquei contente, e mais ainda quando se concretizou.
Teve outros golos importantes: no Dragão, em Olhão...
Esse golo em Olhão foi importantíssimo na caminhada para o título, apesar de ter sido o do empate - estivemos a perder quase até ao fim. Os dois golos no Dragão têm um sabor diferente porque há muitos anos que não se ganhava lá e, depois, havia algum tempo que um jogador do Benfica não conseguia fazer dois golos aí. Depois do César Brito, consegui eu, e são momentos que sabem muito bem a um benfiquista. Marquei na vitória da Supertaça ao V. Setúbal, tenho alguns golos com significado pelo Benfica.
É um avançado que aparece sempre nos momentos decisivos?
Não sei, por mim marcava em todos os jogos. Uma final ou um jogo do título têm sempre uma carga emocional diferente. Como avançado, tentava sempre fazer o máximo de golos e preocupava--me mais com a vitória do que em ser eu a marcar. Já no Boavista, em momentos importantes, fiz golos, na Fiorentina, na selecção. Se calhar é aquela estrelinha de que um avançado precisa para, nos momentos decisivos, poder deixar a sua marca.
O 3-2 à Inglaterra no Euro-2000 ficará para sempre na memória dos adeptos. Como é que aconteceu aquela reacção fantástica?
Ao intervalo já estava 2-2, foi dentro do campo? aos 20 e poucos minutos estávamos a perder 2-0. A partir desse momento acordámos para o jogo, percebemos que tínhamos de lutar até ao fim para não deixar uma má imagem, acima de tudo era isso. Nunca deixámos de acreditar, esse foi o grande segredo. O grande golo do Figo talvez tenha sido o desbloquear e deu-nos outra confiança. Tínhamos jogadores que, a qualquer momento, podiam fazer a diferença. Ao intervalo tivemos tempo para reflectir e relaxar um pouco da adrenalina dos primeiros 45 minutos. O resultado podia cair para qualquer dos lados, ambos queriam a vitória. A segunda parte foi um jogo mais cauteloso. A sorte pendeu para o nosso lado com uma jogada do Rui Costa, que me fez uma excelente abertura, e eu tive o discernimento de bater o guarda-redes. Foi um jogo memorável para os portugueses e o historial da selecção.
O que lhe disse Humberto Coelho antes do jogo?
Foi a minha estreia a marcar na selecção A e lembro-me de que estava nervoso, como é óbvio. Era o meu primeiro Europeu, contra uma selecção fortíssima, mas lembro-me de que o mister me libertou de todo o stress. Só me comunicou que ia jogar duas ou três horas antes, se bem que eu desconfiava, porque não havia grandes alternativas [Pauleta castigado, Sá Pinto lesionado].
É o jogador que mais vezes saiu do banco e marcou na história da selecção: 16 tentos. Qual a explicação para este fenómeno?
Era muitas vezes utilizado como arma secreta. Sempre fiz, no meu percurso pelas camadas jovens da selecção, muitos golos vindo do banco. Houve fases em que alternava a titularidade com outros jogadores. Não lhe consigo explicar. Se os treinadores apostavam em mim para mudar qualquer coisa no jogo, eu tentava sempre fazer o que devia. Os suplentes são armas que os treinadores podem usar no decorrer do jogo e é com intenção de mudar alguma coisa. Sempre tive essa felicidade de entrar e poder mudar o jogo a nosso favor.
Qual a sua opinião sobre Ronaldo?
É um jogador que faz a diferença. Apanhei a estreia dele na selecção e desde cedo se notou que estávamos perante um caso sério no futebol. É um jogador que nunca se tinha visto antes em Portugal, conseguia juntar tudo: técnica, força, velocidade, o querer fazer sempre mais, e acho que isso fez dele o jogador que é hoje. Ainda bem que é português, é sem dúvida a nossa melhor arma.
Quais os melhores avançados que passaram por Portugal?
O Jardel era uma máquina de fazer golos. Esteticamente, não era muito bonito, nem era jogador de equipa. A própria maneira de correr, não fintava dois ou três, mas era um puro 9, um jogador de área mortífero. Marcava golos até de costas para a baliza. No tempo em que joguei no Benfica, foi dos que deram mais nas vistas. Mais recentemente o Falcao, é um excelente goleador. Nos primeiros três anos no Benfica, não consegui ser o melhor marcador porque tive pela frente o Jardel, era sempre ele. Talvez seja o 9 que gostei mais de ver.
O Benfica perdeu o título no Dragão. Acha que a equipa bloqueia nos jogos com o Porto?
Os jogos são sempre imprevisíveis. Nos últimos anos, quando o jogo é no Dragão, já se dá por adquirido o resultado antes mesmo de começar. Se calhar, isso entra no subconsciente dos jogadores e da equipa técnica. O Benfica tem a sua identidade, que tem conseguido manter quase sempre desde que entrou Jorge Jesus. Mas nos jogos do Dragão, por um ou outro motivo, a equipa parece bloqueada. Não considero que o último jogo tenha sido uma diferença tão abismal, o Benfica entrou a ganhar e depois deixou--se empatar. Foi um jogo muito mais equilibrado que caiu para o lado do Porto perto do fim, por isso se perdeu o campeonato. Embora considere que se perdeu na semana antes, no empate com o Estoril porque, aí sim, erro do Benfica em pensar que o jogo estaria ganho.
O Benfica já leva cinco pontos de desvantagem para o Porto. Qual a esperança de ser campeão?
Há muito campeonato pela frente, embora cinco pontos seja uma diferença considerável. Haverá um Porto-Sporting na próxima jornada, portanto, um deles perderá pontos. O Benfica não entrou bem, as exibições estão um pouco aquém do que era esperado. Houve um final de época muito desgastante, não só físico, mas sobretudo emocional e psicológico. Ao ter começado mal na Madeira, reviveu--se tudo o que foi o final da época passada. Só resta uma alternativa ao Benfica: continuar a trabalhar com afinco, conseguir o mais rápido possível colar-se ao Porto para discutir o título no final.
Vieira disse que terá uma porta aberta para regressar. Sente que o seu futuro passará pelo Benfica?
Não sei. O presidente disse isso na altura porque foram muitos anos que passei no Benfica, é um clube de que gosto e uma casa onde fui muito bem tratado e dei o máximo dentro e fora do campo. Já disse várias vezes que gostava um dia de voltar, porque me sinto bem e como se estivesse em casa. Nunca se sabe, poderá um dia acontecer ou não.
Quer continuar a jogar?
Sim, tinha vontade de experimentar outros desafios fora da Europa. Tive essas possibilidades que, por uma razão ou outra, não se concretizaram, mas gostava da experiência em si, não só pelo que poderá acrescentar à minha carreira mas também por conviver com outro tipo de culturas e perceber o que se pratica dentro do campo noutros lados. Espero que esteja resolvido nos próximos dias, seria o ideal.
Portugal vai estar no Mundial?
Acredito que sim, temos uma excelente selecção, uma equipa que forçosamente tem de estar no Mundial. Portanto, apesar de ser muito complicado o acesso directo, vai chegar aos playoff. Estamos habituados, nos últimos anos, a ir às grandes competições, e o Mundial do Brasil não vai fugir à regra. Por todas as razões e mais algumas, é importantíssimo que lá estejamos.