Enke em entrevista

Fonte
record
Ao cabo de três anos ao serviço do Benfica, o guarda-redes alemão mostra-se agradecido e despede-se. Sabe hoje que fez bem em vir para Portugal e acredita que Barcelona pode ser um bom destino Chegou com 21 anos e uma grande esperança em triunfar num clube de grande prestígio mundial. Parte sem títulos, mas leva o Benfica no coração. Uma entrevista de balanço, na qual emite opiniões interessantes sobre as saídas de João Pinto e Van Hooijdonk, enquanto elege um sucessor: Moreira. – Com que memórias fica da passagem de três anos por Portugal? – Parto, sobretudo, com todas as memórias positivas. É verdade que não consegui nenhum título, mas não me esqueço de tudo de bom que aqui vivi. Eu, um jovem, ainda por cima estrangeiro e guarda-redes, tive o privilégio de ser capitão durante meio ano, prova absoluta de reconhecimento e de sucesso num grande clube. A conclusão de tudo isto é simples: posso dizer agora, com segurança, que há três anos tomei a decisão certa ao ingressar no Benfica. – A mesma segurança com que dirá ter sido este o momento certo para sair? – Isso já não sei, daqui por um ano talvez o possa dizer, mas não agora. – Mas trocar Portugal por Espanha e o Benfica pelo Barcelona parece um evidente passo em frente na carreira... – Espero que seja. A Liga espanhola é a melhor do Mundo e o Barcelona é um dos maiores clubes da Europa... O que está claro para mim é outra coisa: é a altura para me ir embora e não podia recusar este desafio. – Parte com melhor balanço pessoal que desportivo? – As duas coisas equivalem-se. Portugal e o Benfica foram muito importantes para mim como jogador e como cidadão. Cheguei aqui com 21 anos e agarrei a titularidade de um clube com grande expressão internacional, o que em termos desportivos foi muito importante. Como homem, passei aqui uma etapa importante da minha vida. – Como define a grandeza do Benfica? – Não a sei definir, apenas tenho dados que me permitem dizer com segurança que tem uma dimensão universal. É incrível o apoio que este clube tem na Suíça, na Alemanha, nos Estados Unidos, em Angola... Em todo o lado apareciam benfiquistas orgulhosos do seu clube, da sua história e isso não se pode quantificar. O mais impressionante é sentir todo esse entusiasmo com a noção de que o título foge há oito anos. – E, ao contrário do que projectava, sempre se despediu sem saber o que é ser campeão pelo Benfica... – Pois, mas isso agora só serve mesmo de lamento. Ser campeão neste clube deve ser uma coisa incrível, o País deve entrar quase todo em festa. O que posso dizer agora? Tenho pena de não experimentar a sensação. – Qual foi a melhor época que passou na Luz? – A primeira, em 1999/00, foi aquela que melhor alimentou a esperança. Nada ganhámos, é verdade, mas andámos sempre perto dos primeiros e chegámos ao fim junto de Sporting e FC Porto. Nessa altura Jupp Heynckes afirmou que o terceiro lugar tinha sido um sucesso e as pessoas não entenderam. Pelo contrário, levaram a mal as suas palavras. Os dois anos seguintes provaram que a razão estava do lado dele. – Acha, então, que essa época deveria ter sido o início de um processo evolutivo?... – Um bom início, acrescento. E digo-lhe mais: com Jupp Heynckes na segunda época não teríamos sido sextos classificados. Claro, nunca se sabe o que podia acontecer, mas esta é a minha opinião, que nada tem a ver com o valor e o trabalho de Mourinho e Toni, mas com todas as mudanças provocadas pelas sucessivas alterações. – Mudanças também a nível da estrutura dirigente... – Isso é outra coisa que eu não percebo em Portugal: tudo bem que os adeptos votem noutra pessoa para presidente, mas não percebo por que motivo mudam todos os outros directores. Um ou outro vice-presidente compreende-se, são cargos de confiança. Mas toda a estrutura, de alto a baixo, é um exagero... E os jogadores são os primeiros a sentir negativamente esse tipo de oscilações. – Consegue definir o momento certo em que tomou a decisão de não renovar o contrato com o Benfica? – Não me lembro do dia exacto, mas foi há cerca de meio ano, talvez há sete/oito meses, não sei. Mas quando tomei a opção não tinha ainda um rumo certo, até porque não tinha qualquer proposta. – E o clube soube logo qual era a sua intenção? – O Benfica soube muito antes de eu tornar pública a decisão, porque foi minha intenção fornecer-lhe todos os dados para poder planificar a época seguinte. Podia ter andado a esconder as coisas, adiando tudo para Maio, por exemplo, como arma de autodefesa. Mas não: em Dezembro ou Janeiro o Benfica ficou a saber que não iria renovar o contrato. – Houve alguma verdade naquilo que se falou então, que o FC Porto e o Sporting estiveram interessados nos seus serviços? – Isso esteve na origem de um dos episódios mais negativos da minha passagem por Portugal: uma pessoa, um tal senhor Damásio, não sei porquê, chega à televisão e dá como verdade uma absoluta mentira. Ao dizer que eu já tinha assinado pelo FC Porto, provocou apenas que, no dia seguinte, estivessem vinte jornalistas à minha espera e umas largas dezenas de adeptos a assobiar-me, só porque alguém lhes vendeu como facto consumado que eu ia para o Porto. Acha isto justo e normal? – Sendo mentira era injusto e anormal. E o que me diz da polémica eterna com os árbitros? – Penso que o futebol português sofre com essas coisas. Que só se resolvem quando todos se convencerem que os árbitros não erram porque querem, mas porque são humanos e falham como todos nós. Digo isto mesmo reconhecendo que houve algumas coisas menos correctas e que os árbitros portugueses me parecem muito melhores quando actuam no estrangeiro. – Gostou do que viu no Mundial? – Gostei de algumas coisas, não de todas, é um facto, mas gostei por exemplo da forma como selecções menos fortes conseguiram superiorizar-se aos mais consagrados. – O Brasil foi bom campeão? – O Brasil mostrou que suportar o talento das unidades mais criativas com organização e disciplina pode ser uma chave para o sucesso. A Alemanha tinha uma dessas armas mas não tinha a outra. De qualquer modo, muito do crédito deve ser dado a Rudi Völler que, acima de tudo, soube gerir o grupo de forma espectacular, evitando problemas de relacionamento. «João Pinto precisava de um novo desafio» Sobre um dos casos mais polémicos do futebol benfiquista: – Compreende por que motivo João Pinto foi dispensado? – Não sei se as pessoas vão perceber exactamente o que pretendo dizer, mas prefiro não ser falso. Conheço mal o João, porque só trabalhei um ano com ele, mas naquela altura pareceu-me que ele precisava de um novo desafio para relançar a carreira e se reencontrar consigo mesmo. Deu-me a ideia de que estava cansado, perturbado até e que apesar de ter muito potencial, o seu rendimento ficava sempre um pouco longe do que podia fazer. – Compreende, então, as razões da dispensa... – Não conheço os argumentos que levaram Jupp Heynckes a colocá-lo na lista de dispensas, mas compreendo, de uma forma geral, o primeiro instinto. De resto, foi uma decisão muito boa para o João Pinto, que fez dois anos espectaculares no Sporting. Não sei se os faria no Benfica, até porque, sejamos justos, na última época na Luz ele não jogou tanto como o fez em Alvalade. «Moreira tem muito talento» Em relação ao seu sucessor na baliza encarnada, Robert Enke acredita que o testemunho fica bem entregue nas mãos de Moreira: – É um miúdo com muito carácter, que para triunfar, como eu penso ser possível, precisa apenas de jogar. Moreira tem muito talento, um carácter forte e uma estatura pouco habitual para um guarda-redes português. Tal como para mim, quando cheguei a Portugal, com 21 anos, também ele precisa de competir para crescer e de sentir à volta um clima de total confiança. – Fala-se agora da possibilidade de Quim ser contratado pelo Benfica... – Também li nos jornais. Não sei como vai ser, tenho apenas a certeza de que o clube pode confiar no Moreira sem qualquer receio. – No seu caso, aos 24 anos, em que patamar de evolução se encontra? – Já não sou aquele miúdo dos primeiros tempos e ainda me falta aquela experiência que só o tempo oferece. De qualquer modo, já tenho parte do percurso cumprido: joguei três anos no Benfica, seis meses como capitão, e desci de divisão com o Borussia Mönchengladbach, que foi uma experiência negativa muito marcante. Com seis anos de profissionalismo, tenho agora pela frente o desafio do Barcelona. O mais importante é fazer o maior número possível de jogos porque, como já disse, só em competição um guarda-redes pode melhorar. «Não percebi a saída de Pierre van Hooijdonk» Para Enke, a dispensa de Van Hooijdonk foi um erro, salvaguardando a ideia de não conhecer os fundamentos da decisão do clube. – Como encarou a saída de Van Hooijdonk no final de 2000/01? – Fiquei surpreendido, mais ainda do que no momento de saber, um ano antes, que João Pinto estava na lista de dispensas. A verdade é simples: não estou aqui para criticar ou julgar quem quer que seja, mas não percebi a saída de Pierre van Hooijdonk. Não é daqueles jogadores de quem os adeptos portugueses gostem; não é um futebolista espectacular, capaz de fazer coisas incríveis com a bola, mas é de uma eficácia tremenda. E depois, Pierre tem um conceito muito preciso do que é uma equipa de futebol. – É verdade que essa firmeza na defesa dos interesses do grupo levou a alguns conflitos no balneário? – É verdade. Tivemos alguns problemas com Roger e André, porque eles têm uma ideia muito individualista do futebol. Ora isso foi muito complicado para quem pretendia pôr o balneário a funcionar como um todo. Foi esse o motivo principal para o choque entre eles e o grupo, no qual o Pierre tinha posição importante. Enfim, mesmo sem conhecer todos os fundamentos da decisão, mandá-lo embora foi prejudicial para o Benfica. Como de resto se viu pela época que ele fez no Feyenoord. SELECÇÃO "Continuo a pensar na selecção, mas sei que os próximos dois anos serão decisivos. Tudo depende se jogar em Barcelona." KAHN "É o melhor guarda-redes que vi em toda a minha vida, um digno sucessor do lendário Sepp Maier. Ele é daqueles que nunca falham." ALEMANHA "A Alemanha mostrou muita disciplina e espírito de grupo. Esperava um bom torneio, mas chegar à final foi uma surpresa." MUNDIAL "As selecções chamadas mais pequenas surgiram mais frescas e aptas. Gostei imenso do Senegal e também da Turquia." BENFICA "Estou agradecido ao Benfica por ter resolvido as questões financeiras pendentes, prova de muita consideração por mim."