Dentro da festa

Submetida por Theroux em
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O dia da festa encarnada começa cedo. Começa antes de domingo. Na sexta-feira à noite. Num jantar. Logo ali consigo ouvir o marido a falar com a esposa ao telemóvel. «Diz aos nossos filhos que o almoço de domingo de Páscoa passa para sábado. Tem de ser amanhã. No domingo vou cedo para o estádio e não tenho tempo para almoços nem para Páscoas.» Desliga a chamada e comenta com o amigo ali ao lado. «Fui ver os jogos todos esta época e não falho este só por causa da Páscoa. Nem sequer vou chegar atrasado. Quero ir para Lisboa logo de manhã.»

A ansiedade daquele homem é igual à de tantos outros que encontro no domingo. Chego às imediações do estádio por volta das 14h e já dá para sentir a febre vermelha. Paira no ar a hipótese de festa e de uma longa noite que ficou guardada desde o minuto 92 da época passada. Falo com um grupo de quatro amigos que veio de Famalicão. «Daqui vamos para o Marquês e será até as tantas.» «Não se trabalha amanhã?», pergunto. «Trabalha-se, claro. Mas fazemos directa, se for preciso.» «E se não houver festa?» A pergunta cai mal: «Aquilo que aconteceu na época passada, não volta a acontecer», diz um deles. Os outros apressam-se aos gritos: «Vem-te embora, vamos buscar mais cerveja.» Volto a encontrá-los por volta das 16h, duas horas antes do jogo. Um deles já está a dormir no chão. «Sentiu-se mal e vomitou. Está a descansar. Daqui a pouco fica fino», explicam-me.

O drama do WC

Já falta pouco para o jogo começar. Muito pouco. As equipas estão em campo. A bola no centro do terreno. Os jogadores do Benfica olham uns para os outros antes do pontapé de saída. E mais de 63 mil espectadores fitam o relvado. Sente-se um silêncio ensurdecedor antes do apito inicial de Carlos Xistra. E eis que… «Pai, preciso de ir à casa de banho.» Ali, bem no alto, no piso superior da bancada Sagres, muito longe das escadas. Uma necessidade é uma necessidade, mas o pai não gosta do pedido do filho, que deverá ter 5 ou 6 anos. «E só agora é que dizes? Santa paciência. Vá, vamos lá.» Os dois descem em passo de corrida enquanto saltam por cima das muitas pessoas que estão sentadas nas escadas. E voltam a subir, passado pouco tempo, ainda mais apressados. Sentam-se. O pai respira fundo e lança a ordem ao filho: «Agora acabou-se. Vê o jogo e fica sossegadinho.»

Mas a criança não pára de se mexer. Assim como toda a gente. Ninguém fica quieto. A impaciência e o sofrimento da nação encarnada sobem a cada lance falhado pela equipa de Jorge Jesus. Rodrigo, Salvio e Maxi Pereira andam perto do golo, mas a bola não entra. Chega o intervalo. Com os receios de um passado recente. As lembranças do Estoril e o pânico de uma festa adiada. Pior ainda: alguns, pela rádio e pela internet nos telemóveis, sabem que Salvio ficou fora de combate. Más notícias. Ao mesmo tempo, o intervalo volta a trazer o drama do WC. Para o pai, para o filho e para mais alguns milhares. As filas são longas, os 15 minutos de paragem parecem segundos e ai de alguém que demore demasiado tempo. «Ó chefe, isso é para urinar, não é para fazer festinhas», diz um adepto a outro que ficou perto do urinol mais de um minuto.

Lima anti-stress

Vem a segunda parte. Mais nervos. Mas por pouco tempo. Aos 57 minutos, Lima emenda um remate de Gaitán à boca da baliza. Ainda antes do brasileiro empurrar para golo, a Luz fica ao rubro. Loucura e alívio. Algumas lágrimas, aqui e ali. Uma explosão que aumentou ainda mais com o segundo golo dos encarnados três minutos depois. Lima, mais uma vez. Agora com um “frango” de Belec, guarda-redes do Olhanense. Ninguém se importa. «Somos campeões», ouve-se aqui e ali. «Já está!» «Ó Bruno de Carvalho, agora vai lá fazer mais um comunicado.»

Ainda faltam 30 minutos para o jogo terminar, mas já ninguém se vai sentar. Pelo contrário. O cântico ecoa pelas bancadas: «Tudo a saltar, tudo a saltar, tudo a saltar!» É assim até ao fim. Xistra dá dois minutos de desconto. Passam num ápice. E a Luz explode novamente. O Benfica é o novo campeão nacional. «O campeão voltou», como se canta por ali. No meio dos gritos, dos saltos, das selfies, dos telefonemas, das tentativas desesperadas para publicar as novas fotos no Facebook, entre todo aquele festejo made in redes sociais, está um senhor de idade, sentado, com as mãos na cabeça. Aproximo-me dele: «Sente-se bem?» «Estou bem, obrigado. É a emoção, só isso.» Diz-me que tem 78 anos. «A idade com que o Coluna nos deixou. Foi um ano terrível com a morte dele e do Eusébio, depois daquele final triste na época passada. Merecemos isto. Merecemos esta festa. O Benfica é o maior amor da minha vida.»

O palco é montado. Os jogadores são chamados um a um. Luisão levanta a taça. Aqui e ali começam a ouvir-se os planos para o que se segue. Todos com o mesmo destino. «Vamos já para o Marquês porque depois o metro é uma confusão.» Outros, mais confiantes, preferem a tranquilidade antes da festa: «É melhor comermos qualquer coisa no Colombo, com calma, e depois vamos para o Marquês.» À saída do estádio há indumentárias e veículos para todos os gostos. «Houve gente que preparou isto muito bem», diz um vendedor ambulante de cachecóis, entre os gritos da ordem: «Olha o cachecol, Benfica campeão, 5 euros.»

O metro a saltar

A viagem de metro a partir da estação do Colégio Militar da Luz é uma alucinação vermelha. Parecem as carruagens da China em hora de ponta. Há sempre lugar para mais um ou para mais dez. A cada paragem. Menos quando é impossível. E, nessa altura, têm de se lançar os falsos alarmes e as mentiras. «Não entrem, não empurrem. Não dá mais. Estão aqui crianças à frente.» Não há crianças por ali, claro. Apenas calor, muito calor, e pessoas apertadas como se fossem sardinhas em lata. Mas ninguém se importa. E os cânticos continuam. Volta o «tudo a saltar, tudo a saltar», embora ali não seja o lugar mais indicado. «Estejam quietos senão esta merda ainda descarrila», grita um adepto ciente dos perigos.

Chegamos à estação do Parque. Faltam apenas duas para o Marquês de Pombal. O metro está parado e ouve-se um vidro a partir. Ninguém sabe se foi na carruagem ou fora. Mas todos percebem que a viagem acabou ali. O resto do percurso tem de ser a pé. E faz-se bem. Basta seguir a mancha vermelha.

Rave vermelha

O Marquês, com o seu leão ao lado, tem uma camisola do Benfica vestida. Alpinistas urbanos tentam chegar ao cimo da estátua e animam a multidão enquanto a equipa do Benfica não chega. E está por ali um palco e um DJ. Parece uma rave party. Uma rave vermelha a céu aberto. Os turistas passam pelo local e já não se vão embora. Compram cachecóis e cerveja de lata. Juntam-se à festa. Dançam, saltam. Cantam o «Glorioso SLB» com sotaques variados.

Esta parte de Lisboa parece um festival de verão. Uma espécie de Optimus Alive ou Rock in Rio. «Mas de borla», como lembra um amigo que encontro por ali. E com outra diferença: aqui, a banda principal não são os Rolling Stones, mas os jogadores do Benfica. E Jorge Jesus é uma espécie de Mick Jagger em versão holigan. A rockstar do povo.

Os adeptos esperam, dançam, bebem. E cantam. Pelo Benfica. Pela vitória. O autocarro panorâmico chega por volta da meia-noite. E as tochas vermelhas invadem a praça do Marquês. Voltam as lágrimas de emoção dos mais velhos. Vêm os discursos dos protagonistas, os aplausos e um fogo-de-artifício vermelho. A equipa começa a fazer o percurso de volta. Mas ninguém arreada pé do Marquês. A festa promete continuar até às tantas. Pelo menos, para alguns. E são muitos. Outros acabam vencidos pelas dores nas pernas, pelas obrigações profissionais do dia seguinte ou, simplesmente, pelo sono das crianças que estão com eles.

Caminho para o carro juntamente com aqueles que me acompanham. Já passa da uma da manhã e esta crónica da festa tem de ser escrita. Chave na ignição, rádio ligado. Começa uma música dos Strokes. Chama-se The end has no end (o fim não tem fim). Parece-me o título indicado para resumir o estado de espírito de todos os benfiquistas que ainda estão a comemorar. E lembro-me de uma frase que ouvi de um deles pouco antes de me vir embora: «Esta festa não acaba aqui. Vamos voltar para celebrar tudo o que ainda vamos ganhar esta época. Em Portugal e na Europa.»