Fonte
A BOLA
O Benfica não pode estar sempre
a olhar para trás!
Foi em Agosto de 2001 que Luís Filipe Vieira deu à imprensa a sua primeira e única grande entrevista até hoje, publicada então nas páginas deste jornal. Um ano e meio depois, o actual presidente da SAD do Benfica volta a dirigir-se aos adeptos e sócios do clube através de A BOLA. Lança desafios, alerta para o papel decisivo que devem ter os benfiquistas no futuro da instituição, volta a revelar-se um homem simples e até humilde, como um bom bairrista de convicção, à imagem, afinal, da instituição popular de que se vê ser, no mínimo, um apaixonado defensor.
Em ano de eleições, talvez muitos esperassem de Filipe Vieira uma palavra sobre as suas intenções. Mas o líder da SAD resguarda-se compreensivelmente. Ainda é cedo. Mas deixa clara a ideia de que não fugirá a qualquer responsabilidade. Ninguém negará que ao longo de todo este tempo muitos factos o poderiam ter levado a desistir e não desistiu. Acredite-se portanto que é suficientemente teimoso, persistente e trabalhador para não baixar os braços.
Percebe-se hoje com facilidade o maior cuidado com que Filipe Vieira trata qualquer eventual questão mais delicada do Benfica. É natural: conhece agora muito melhor a realidade do clube e tem hoje mais experiência. Diz, por isso, que «os primeiros tempos foram difíceis» e assume com humildade ter-se deixado sujeitar «à pressão do imediato» e tomado algumas decisões «que hoje não tomaria».
É este homem de 53 anos, casado e pai de dois filhos (Sara, de 17 anos, e Tiago, de 26), que vai receber esta noite, no decorrer de um jantar na FIL, uma homenagem vinda de um grupo alargado de sócios do Benfica que entende ter chegado o momento de agradecer ao presidente da SAD tudo o que tem vindo a desenvolver nestes quase dois anos que leva de trabalho efectivo no Estádio da Luz. «É apenas uma festa do Benfica», diz Luís Filipe Vieira, desvalorizando o facto de ser ele o centro dessa festa. A conversa começou por aí.
— Vai receber uma homenagem, portanto não é apenas uma festa benfiquista.
— Para mim é. Quem me conhece sabe que sou avesso a homenagens e a discursos e que fico até um pouco embaraçado com esse género de coisas. Em relação aos organizadores desse jantar devo dizer que não os conhecia de lado nenhum e que, como as pessoas devem calcular, fui e sou totalmente alheio a essa iniciativa.
«Sócios e adeptos têm palavra decisiva»
— Mas num Benfica tão dividido e tão agitado nos últimos anos, não deixa de ser curiosa e surpreendente esta festa de unidade.
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa que, para mim, é muito importante. Tenho orgulho no trabalho que está a ser feito para que o Benfica volte a ocupar o seu lugar a todos os níveis. Tenho dado dias inteiros ao Benfica, o Benfica passou a ser o centro da minha vida, aliás, de outra maneira não poderia ser, mas é preciso que as pessoas entendam que já não há heróis, nem mecenas e que chegou o tempo de o Benfica ser dirigido por um colectivo forte e unido nos mesmos objectivos e que chegou também o tempo de os sócios do Benfica entenderem que têm uma palavra decisiva a dizer sobre o futuro do clube.
— Está a falar de eleições?
— Por amor de Deus, não. Estou a dizer aos sócios do Benfica que vêm aí tempos melhores, podem crer, mas também eles vão ter de colaborar de modo efectivo na recuperação económica e desportiva do clube.
— Refere-se ao cartão-Benfica que vai ser lançado?
— É uma iniciativa inédita e da maior importância. É fundamental que os benfiquistas respondam sem hesitação a esse desafio. O Benfica tem dimensão para ser de facto um dos mais fortes clubes do Mundo, mas nada valerá a pena se os adeptos e sócios não acreditarem nisso, se não forem os primeiros a querer que o Benfica seja realmente o número 1. Esta é uma instituição que deve fomentar e preservar valores socialmente importantes, como seja o da solidariedade, e não pode deixar desumanizar-se. Temos um papel importante na sociedade deste país e é sobre isso que todos os benfiquistas devem debruçar-se e unir-se. Precisamos de todos para tornar realidade esse objectivo de grandeza.
Campeões da solidariedade
— Mas como é isso possível?
— Se todos quiserem demonstrar a verdadeira grandeza do Benfica, se todos quiserem demonstrar o verdadeiro peso da nossa marca, então não tenho dúvidas do sucesso do nosso projecto. Mas nunca é de mais afirmar que isso depende de todos os benfiquistas; se participarem, seremos imparáveis. É essa a mensagem que sempre procurei transmitir e que deve fazer as pessoas reflectir. A relação dos benfiquistas com a instituição não pode ser uma relação de jogo de futebol; tem de ser uma relação de valores e princípios. Por isso será importante levar a instituição a comunicar semanalmente com todos, seja através da Internet, da multimédia, ou de órgãos de comunicação social próprios ou outros. Fundamental é que em poucos segundos, o Benfica e os seus adeptos estejam ligados. Além disso, todos os nossos sponsors que acreditam no projecto da marca Benfica vão estar devidamente sintonizados e motivados e os seus nomes vão chegar aos quatro cantos do Mundo.
— Fala muito dos princípios...
— Pois falo. Princípios de solidariedade. É preciso perceber-se em toda a sua dimensão, por exemplo, o que pode representar a visita de um jogador do Benfica a um hospital. É disso que falo. Falo de levar às escolas a história do Benfica em banda desenhada. São inúmeras as possibilidades. Falo, no fundo, da relação que a instituição Benfica deve ter com a sociedade. Antes de sermos campeões no campo, devemos ser campeões da solidariedade, dos valores humanos. Isso é fundamental para sermos grandes; não basta dizer que somos grandes.
«Não contem comigo para campanhas...»
— Falemos ainda de eleições. Já alguma vez pensou em candidatar-se?
— Não faz sentido colocarmos cenários a tão grande distância das eleições no clube. Mas considero importante dizer o seguinte: se algum dia vier a colocar a hipótese de me candidatar a presidente do Benfica, repito, se algum dia isso acontecer, que fique claro que jamais entrarei em campanhas eleitorais. Estou no Benfica para o servir, e trabalharei até ao último dia com o mesmo empenho e determinação. Depois, no dia das eleições lá estarei a votar, como qualquer outro sócio do clube. Os benfiquistas sabem o trabalho que tem sido feito e devem votar de acordo com isso, e devem votar no clube, não em politiquices ou em campanhas. Quem estiver disponível para esse tipo de coisas que o faça. Comigo não contam. É minha convicção que os sócios do Benfica não merecem mais politiquices; merecem que trabalhemos pelo clube. O Benfica não merece mais campanhas eleitorais nas quais se gastam energias fundamentais para resolver os verdadeiros problemas da instituição.
— Voltemos à festa desta noite. Como é que lhe foi apresentada a iniciativa?
— Absolutamente por acaso, fui uma vez parado na rua por um grupo de benfiquistas, muitos deles de fora de Lisboa, que vendo-me quiseram conversar um pouco sobre o clube. Sempre respeitei as opiniões de toda a gente e respeito também as opiniões dos sócios anónimos, porque são eles a mola real do clube. Ouvi o que tinham para me dizer, conversámos um pouco e, à despedida, disseram-me que iam organizar uma festa benfiquista e que gostavam muito de me ter como convidado. A partir daí, nunca mais soube de nada até perceber que havia a correr uma lista de inscrições para um jantar.
Homenagem também à família
— Mas não pode ser insensível a esta festa...
— Aceitei-a por dois motivos únicos.
— Pode-se saber quais são?
— Em primeiríssimo lugar, porque entendo que a minha família, a minha mulher e os meus filhos, têm sido fortemente penalizados ao longo de todos estes meses em que fiz do Benfica o centro único das minhas atenções. Quem me conhece sabe bem que sou um homem de família e que a família é para mim o mais importante de tudo. É a mais pura das verdades. Por isso, achei que esta festa seria, para mim, um modo de agradecer o apoio que a minha mulher e os meus filhos me têm dado, sabendo eles, como sabem, que a exposição pública a que está sujeito um dirigente do Benfica é, frequentemente, qualquer coisa de intolerável. A minha família soube resistir aos momentos menos bons, a campanhas difamatórias, a notícias falsas e eu estou-lhes grato e reconhecido por isso tudo. Os organizadores da festa podem entender que se trata de uma homenagem ao Luís Filipe Vieira, mas eu entendo-a como uma homenagem à minha família que tem sofrido muito.
— E qual é o segundo motivo que o levou a aceitar esta festa?
— A unidade do Benfica. Numa casa dividida não há sossego, não há pão, não há sucesso. Para além dos muitos problemas estruturais que encontrei no clube, aquilo que mais me preocupa desde o momento em que cheguei é verificar que ainda não estão curadas as feridas dos últimos anos e que, assim, o clube vai continuar a ter grandes dificuldades em ultrapassar esta fase má. O Benfica tem de olhar para a frente, não pode estar sempre a olhar para o lado e a olhar para trás. Por isso, esta homenagem deve ser vista como uma verdadeira homenagem ao Benfica. Até desafio os simpatizantes e sócios que queiram estar presentes para que se vistam à Benfica, com uma camisola, um cachecol, um boné, qualquer coisa que nos faça sentir e viver o reencontro com a história gloriosa do Sport Lisboa e Benfica.
«Nunca fui homem de problemas»
— Como acha que os benfiquistas o avaliam?
— Não me compete a mim falar disso, não me compete afirmar se tenho trabalhado bem ou mal, se tenho procurado resolver os problemas do Benfica. O que posso dizer é que nunca fui um homem de problemas, tenho sido sempre um homem de soluções. Nunca quebrei qualquer laço de solidariedade com o meu presidente do clube ou com todos aqueles que o acompanham nos órgãos sociais e que têm trabalhado na defesa da instituição.
— E como sente os ataques de que tem sido alvo?
— Sinceramente deixaram de me preocupar. Continuarei a andar por todo o lado de cabeça bem levantada e sem precisar de qualquer protecção. Para me proteger bastam os benfiquistas, que constituem a minha segunda família. Ninguém duvide. Tenho a certeza de que os verdadeiros benfiquistas sabem bem quem está a trabalhar arduamente em prol da instituição, para reeditar todos os valores que a vão conduzir de novo a maior instituição de Portugal. É isso que no fundo preocupa muita gente.
— Mas já se sentiu muito provocado...
— Se fosse só isso estava eu bem. Mas no Benfica não responderemos a provocações; todos aprenderão a respeitar-nos. Não queremos transformar o futebol numa guerra, defendemos um conceito de espectáculo de família e ninguém nos desviará desse caminho. Acreditem que sei perfeitamente que sou um alvo a abater, mas nesse sentido volto a sublinhar que o mais importante para mim é a família e todos os verdadeiros amigos. São eles que me conhecem e sabem os meus valores e princípios. Conheço o mundo em que me envolvi, mas também sei que se algo vier a correr mal neste trabalho de conduzir o Benfica ao seu lugar a minha família estará sempre protegida. Não vale a pena chantagearem-me ou ameaçarem-me. E não me preocupo com contestações externas. No dia em que disserem bem de mim é que o Benfica fica preocupado. Nunca gostei de ser bajulado. E quanto mais vezes disserem mal de mim, mais entendo que estou no bom caminho.
Os difíceis primeiros tempos
— Não acha que, por vezes, o maior inimigo do Benfica é... o próprio Benfica?
— Às vezes, em determinadas circunstâncias, acho. E tenho a certeza de que o Benfica, antes de vencer os adversários exteriores, tem de se saber vencer a si próprio. E não pensem que é tarefa fácil.
— Foi convidado pelo dr. Manuel Vilarinho para gestor do departamento de futebol do clube e só mais tarde foi nomeado presidente da SAD. Alguma vez, ao longo deste processo, pensou em desistir?
— Os primeiros tempos foram muito difíceis, admito. E tomei algumas decisões que hoje não tomaria. Tenho, como atenuante, o facto de desconhecer, na altura, a realidade do clube e o facto de, um pouco ingenuamente, me ter deixado sujeitar à pressão do imediato no que diz respeito ao futebol. Hoje tenho outra perspectiva global e tenho, devo dizê-lo, muito orgulho no funcionamento da SAD que é um modelo exemplar de boa gestão. Dos seus administradores aos seus funcionários, a SAD funciona muito bem com um espírito de equipa e um amor à camisola absolutamente notáveis. E para isto muito tem contribuído o esforço e o empenho da dra. Teresa Claudino, um elemento chave na organização e equilíbrio desta área.
«Não sou de desistir»
— Mas não respondeu à pergunta. Alguma vez pensou em desistir?
— O Benfica tem uma realidade complicada, não é segredo para ninguém, e, muitas vezes, perde-se tempo com coisas sem a menor importância. Não sou homem de desistir desde que tenha ideias claras sobre um assunto e uma visão do caminho a seguir, mas mentiria se não dissesse que, do ponto de vista estratégico dos interesses do Benfica, a minha posição ficou muito mais interessante e mais pro-dutiva a partir do momento em que o dr. Fernando Fonseca assumiu a presidência do Conselho Fiscal.
— Quer-nos explicar porquê?
— Acho justo fazê-lo. Porque encontrei no dr. Fonseca Santos um interlocutor altamente qualificado no sentido de estabelecermos, em bases sólidas, um trajecto a seguir. As minhas convicções sobre o caminho do Benfica são partilhadas pelo dr. Fonseca Santos, como também são pelo dr. Tinoco de Faria que tem sido, com prejuízo da sua vida profissional, um elemento extraordinariamente importante em todo este processo. São pessoas que eu não conhecia de parte alguma e que, a par do dr. Andrade e Sousa, do Luís Seara Cardoso e do Mário Dias, um velho amigo que reencontrei na Luz, têm permitido que o Benfica, passo a passo, vá reencontrando o seu caminho e a sua tranquilidade possível.
Casa mais tranquila
— Lendo algumas notícias nos jornais, permita que se ponha em dúvida a tranquilidade de que fala. O Benfica está a dez meses de eleições e, por vezes, parece agitado com esse facto.
— Posso garantir que o Benfica é hoje uma casa muito mais tranquila do que era há ano e meio. Entre a SAD e o clube existe um relacionamento perfeito, entre mim e o dr. Manuel Vilarinho existe um entendimento total sobre as grandes questões de fundo e, no que diz respeito às eleições, concordo com quem diz que seria bom não agitar o clube com um acontecimento ainda tão distante. Hoje, no Benfica, sabemos o que queremos e para onde vamos, não podemos permitir que outras emoções e outros despiques venham, antes do tempo, confundir os adeptos e beliscar o nome do Benfica perante as grandes instituições com quem estamos a trabalhar ou a definir parcerias estratégicas.
— Como, por exemplo?
— A seu tempo todos os dados serão revelados. O importante é que esses parceiros estratégicos vão ser uma alavanca importante do reerguer do Benfica.
— Não nos quer contar um pouco sobre essa parceria?
— Não. A seu tempo...
A tradição democrática das eleições
— Insistimos: acha que estão reunidas as condições para poder assumir, a seu tempo, uma candidatura à presidência do Sport Lisboa e Benfica?
— O que eu acho é que se pode servir o Benfica de muitas maneiras e não é preciso ser-se presidente para se servir o Benfica. É bom que todos os benfiquistas entendam isto, porque cada sócio, cada adepto, dentro das suas possibilidades deve pensar em servir o clube, em ajudá-lo, e esse apoio anónimo é tão importante e tão decisivo como o de qualquer dirigente no exercício das suas funções.
— Fugiu à pergunta. Não quer mesmo falar de eleições?
— Reafirmo: não vejo o menor interesse em falar de eleições. Mas vejo o maior interesse em promover a tranquilidade interna e em criar condições para que o Benfica possa ressurgir das cinzas.
— Que tipo de candidaturas admite que possam aparecer em Outubro?
— O Benfica é um clube com uma vasta tradição democrática e todas as candidaturas são sempre bem-vindas. Como benfiquista só espero que, sendo o nosso clube a instituição mais mediática de Portugal, não venham a aparecer candidaturas do mundo do espectáculo e de outros mundos à procura de mais protagonismo e de mais audiências.
Grato a Vilarinho
— Comente a declaração do dr. Manuel Vilarinho quando afirmou que não se escusará a tornar público o nome do candidato que vai apoiar?
— É um direito do dr. Manuel Vilarinho e de qualquer sócio ou adepto do clube. Não entendi essas declarações como uma vontade do dr. Manuel Vilarinho em designar o seu sucessor, antes as entendi como um modo participativo de viver o Benfica. Repito, com muito gosto, o que já disse sobre este assunto: o Benfica deve sentir-se grato ao dr. Manuel Vilarinho. Eu, pela minha parte, sinto-me e não tenho problemas em afirmá-lo. O dr. Manuel Vilarinho desempenhou um papel fundamental nesta viragem que o clube está a viver. Negá-lo é cegueira ou ingratidão.