No dia 8 de setembro completou-se meio século desde que Toni se estreou com o Manto Sagrado. Daí para cá, foi também adjunto, treinador principal e ainda diretor desportivo. Numa grande entrevista ao Jornal O Benfica e à BTV, o homem que tanto deu ao Clube fez uma viagem pela sua história na Luz, mostrando também a sua indescritível fibra humana.
Qual o sentimento de cumprir 50 anos de Benfica?
Realmente são 50 anos de Benfica, mas vividos dentro são 34. Contudo, eu estive lá fora, cá dentro nos outros 16 que fazem os tais 50 desde essa estreia em Belém do Pará (agosto 1968), no Brasil, numa digressão que durou mais de um mês. Dali ainda fomos para a Argentina, onde jogámos um torneio com o Santos de Pelé, River Plate, Boca Juniors e Nacional de Montevideu. E, claro, o Benfica apresentava Eusébio, Coluna, Jaime Graça, Simões, entre outros. Depois dessa digressão aconteceu a tal estreia oficial, no dia 8 de setembro, frente ao Belenenses. Resumindo, foi há 50 anos que tudo começou neste clube. E, mesmo nos anos em que estive fora, estive sempre cá dentro.
É uma pessoa muito diferente daquela que aqui entrou pela primeira vez?
No meu primeiro jogo nunca imaginei que seria o primeiro de quase 400. Depois do Anadia, da Académica, equipas com horizontes completamente diferentes dos do Benfica. O grande desafio era saber se o potencial que tinha era suficiente. Sabia da grandeza do Benfica, mas quando entrei, fiquei a perceber o quão grande o Clube realmente é. E isto foi há 50 anos, e vejamos o que o Benfica cresceu. Mas naturalmente que trazia todos esses sonhos na minha bagagem: o desejo de vencer, a motivação e determinação.
Como foi entrar pela primeira vez naquele balneário, com tanto “monstro”?
Esse é o grande momento. A verdade é que antes de chegar ao Benfica já tinha jogado duas vezes contra o Clube, ambas pela Académica. Uma em Coimbra e outra na Luz, para a Taça de Portugal. Acontece que a primeira vez que entro no balneário, entro pela porta onde se encontravam a maioria dos titulares. Isto porque depois havia a parte dos equipamentos, o posto médico e a outra parte onde estava a maioria da malta das reservas. Pela mão do António Simões entro por aquele lado, e o meu cacifo fica na parte dos “monstros”. Esse respirar no espaço onde estavam figuras já naquela altura históricas, para mim era estar a viver o primeiro sonho. Para se ter uma ideia, só ao fim de um mês é que falei com o Eusébio. Tratava todos esses jogadores por senhores, era o senhor Coluna, o senhor José Augusto, por aí fora. Tudo por uma questão de respeito, mas claro que dentro do campo não era assim.
“Foi há 50 anos que tudo começou. Mesmo nos anos em que estive fora, estive sempre cá dentro”
Qual foi o grande jogo pelo Benfica? E o pior momento?
Há um jogo frente ao V. Setúbal em que o Jornal “A Bola” classificou com 3+. A verdade é que as classificações eram de 0 a 3 e lembro-me de que por ser feriado, o jornal não saiu logo a seguir ao jogo, apenas mais tarde. Posso ir buscar o jogo em que me dá o primeiro campeonato, em Tomar. Não pela exibição, mas porque foi um dia que marcou. E depois, claro, há jogos que nos marcam, como o 1-3 com o Ajax, que foi um dia triste. Há tantos exemplos da vida que se podem ir buscar ao futebol. Quando estamos a perder por 0-2 e ganhámos 3-2… Há momentos na vida em que se está em baixo e depois há que lutar para que essa situação seja invertida. Os momentos bons e menos bons são vividos ao logo do futebol, assim como da vida.
E o último jogo como futebolista?
Lembro-me bem. Há uma placa levantada pelo Sr. Gaspar Ramos, em que sai o Carlos Manuel e entro eu, num jogo com o V. Setúbal. A verdade é que gostaríamos que chegasse o dia em que nos pudéssemos despedir daqueles que ao longo de uma vida nos bateram palmas, assobiaram. Muitos de nós, que fizemos um trajeto no Benfica, gostaríamos de ter tido esse dia. Eu senti que aquela partida seria a última, mas não o dia de poder dizer obrigado, nem de agradecer. Nós não temos essa cultura de jogos de homenagens. Mas lembro-me de que fui, enquanto jogador do Benfica, a Old Trafford fazer a despedida do Alex Stepney, guarda-redes que tinha defendido o remate do Eusébio, na final da Taça dos Campeões Europeus, em 1968. O estádio estava completamente cheio, pois lá há essa cultura de despedir.
Quem é o Toni do atual plantel do Benfica?
O meu padrão de exigência foi sempre muito alto. Eu era um jogador, do ponto de vista físico, possante. Do ponto de vista técnico evoluí para patamares bastante razoáveis. Tinha visão periférica do jogo. E compreendi o jogo numa altura em que o Benfica, para além da qualidade técnica, tinha também jogadores de grande qualidade tática. E isto elevou o Benfica para patamares bastante altos, pois tinha jogadores tática, técnica e fisicamente muito evoluídos. Eu não tinha a qualidade técnica de um atleta como o Vítor Martins, um jogador que andava sempre com a cabeça levantada e com a bola nos pés, mas tinha essa visão de jogo. Sabia jogar curto e longo. Nessa altura não havia o chamado 6, era o médio box-to-box, tal como era o Shéu. Acabei por fazer meios-campos com Jaime Graça, Coluna, Shéu, Vítor Martins, Vítor Batista e até com o Eusébio. Chegou a existir um meio-campo com Toni-Eusébio-Simões para que lá na frente pudessem jogar Vítor Batista, Jordão e Nené. Ao longo destes anos têm passado jogadores de grande qualidade pelo meio-campo do Benfica. Há um jogador de quem eu gosto muito, o Fejsa. É uma espécie de âncora à qual a equipa se agarra em termos de equilíbrio defensivo e tem sido determinante. Houve uma altura em que comparavam o Javi García comigo, mas ele jogava muito para o lado e para trás. Eu sou do tempo em que, quando se passava a linha do meio-campo, um passo para trás era um coro de assobios.
“Tive o privilégio de jogar com muitos grandes jogadores. O Eusébio é uma figura incontornável”
Qual o melhor jogador com quem jogou?
Tive o privilégio de jogar com muitos grandes jogadores. Há um que se mete logo de lado. O Eusébio é uma figura incontornável. Aquilo que mais me custa é comparar no tempo o Cristiano Ronaldo e o Eusébio. Não tem lógica. Além da qualidade de finalizador tinha também uma visão de jogo e uma capacidade de passe espetacular. Depois houve Chalana. Eu tenho uma frase, enquanto capitão, que foi “passem a bola ao menino, ele resolve”. E, atenção, ele tem menos treze anos do que eu, portanto estava no fim, e ele estava a começar. Com uma finta de corpo tirava dois adversários da frente. Tinha passe, visão de jogo e drible. De seguida, Humberto Coelho, que jogava em qualquer equipa do mundo. Um central de grande qualidade. Joguei com tantos grandes jogadores: Simões, Jaime Graça, José Augusto, João Alves, Nené ou Jordão. Mas, para mim, Eusébio é a figura máxima.
Falemos agora do seu lado mais pessoal. O Toni (do Benfica) todos conhecem. Quem é o António José Conceição Oliveira?
Ser chamado de “Toni do Benfica” é algo que não tem preço. Enche-me a alma e de orgulho. O António José Conceição Oliveira é alguém que ao longo da sua vida tem procurado defender valores e princípios que me foram transmitidos pelos meus pais. Depois fui bebendo os valores e princípios dos clubes por onde passei, desde o Anadia, passando pela Académica e, por fim, no Benfica. Sou frontal, solidário e penso que absorvo muitas das coisas boas que o futebol tem. Dentro de uma microssociedade que é o balneário desenvolve-se a amizade, a solidariedade e a vontade de vencer. Ou seja, tudo isso se enquadra nos tais valores e princípios que me têm guiado e que depois vão para o homem, o pai, o avô. Isto tudo contribuiu para uma sociedade mais justa.
“O maior desafio era provar que era capaz de o fazer”
Quando nasce o Toni treinador?
Comparando com o que é hoje a formação do treinador, no meu tempo foi muito mais por autodidatismo. Hoje há mais meios à disposição que permitem haver uma melhor preparação para se ser treinador. Eu tentei preparar-me o melhor possível, mas julgo teria já, ao longo do período em que fui capitão, algumas qualidades que poderiam fazer de mim treinador. O maior desafio era provar que era capaz de o fazer. Esse senti que o consegui. Considerava que tinha capacidade de liderança, tinha conhecimento, embora hoje tivesse de melhorar a comunicação, pois é tão ou mais importante que o conhecimento do jogo. Desde os tempos do senhor Mortimore e do capitão Mário Wilson, eu já ia retendo algumas coisas dos seus conhecimentos em cada treino. E já passaram uns 40 anos.
Como adjunto, qual o técnico que o marcou mais?
Eu termino a minha carreira como jogador e fico como adjunto do Baroti, juntamente com o Fernando Caiado. Depois, chega o Eriksson em 1982. Mais novo do que eu, mas com ideias sobre o jogo e treino muito simples. Isso acabou por motivar muito os jogadores, por esses meios de treino que simplificavam o jogo. Há um pormenor que mostra isso mesmo. Quando treinávamos havia à volta do campo umas torneiras de água para regar o relvado. Mas quando começávamos a treinar, as ordens que vinham era para fechar as torneiras para que não se pudesse beber água. Então o Eriksson arranjou um bidão para cada jogador para que se pudesse beber durante os treinos. Claro que teve a sorte de ter grandes jogadores. No ano antes de vir para o Benfica tinha ganho a Taça UEFA com o Gotemburgo, de onde acaba por trazer o Stromberg. Chega aqui e diz que íamos ganhar a Taça UEFA. Eu pensei: “este vem embalado”. Mas o certo é que acabámos por chegar mesmo à final com o Anderlecht. Foi um treinador que marcou mais pelos aspetos psicológicos do que propriamente com o treino. Uma das coisas mais importantes é que os jogadores acreditem no que têm à sua frente, que vão com o líder para todo o lado. É esse o papel que o treinador tem, e eu sentia, enquanto adjunto e antigo colega de muitos daqueles jogadores, que todos se sentiam motivados. Eram processos simples, mesmo com a barreira da língua em que eu ajudava traduzindo. As palestras não eram mais de que 10/15 minutos. Eu falava cinco minutos sobre a equipa adversária, e ele completava.
Como se dá a passagem para treinador principal?
A minha história no Benfica faz-me lembrar o período do Clube entre 1994 e 2000, em que andámos em navegação à vista, até que encontrou um rumo. E eu andei também um bocado em navegação à vista, com alturas conturbadas financeiramente. Acabei por substituir o treinador que veio para o lugar do Eriksson, um dinamarquês, o Ebbe Skovdahl. Ele sai, e nesse ano vamos à final da Taça dos Campeões Europeus com o PSV, em 1988. Eu fico um treinador interino, aquilo não correu nada mal, e levo o Benfica a uma final da principal competição europeia 20 anos depois. Depois há uma hipótese de ir para o PSG, tive uma reunião com eles antes da final, mas, como fizemos essa campanha, a direção da altura resolveu apostar em mim, ficava baratinho. A época 1988/89 lá foi andando, e fomos campeões. Eu ganho o campeonato, mas “eles” lá acharam melhor fazer regressar o Eriksson. Até há uma história curiosa. Marcam uma reunião com o Eriksson, ele liga-me para eu o ir buscar ao aeroporto. Eu lá o fui buscar e depois acabo por estar na conversa em que ele é convidado para o meu lugar. Ser campeão e depois passar para adjunto é a primeira bazucada que dou nos pés. Atualmente era impensável. Mas, pronto, era o Benfica.
“Vamos à final da Taça dos Campeões Europeus com o PSV, em 1988. Eu fico um treinador interino, aquilo não correu nada mal”
E depois volta para técnico principal…
Em 1992/93, o Tomislav Ivic sai, e volto a pegar na equipa. Ficámos em segundo e ganhámos a Taça de Portugal. Em 1993/94 é aquele ano em sai o Pacheco e o Paulo Sousa, esteve para ir o João Pinto, o Rui Costa e o Isaías. Eu não sabia se começava ou não a época até que aquilo lá se equilibrou. Ganhámos o campeonato, mas eu já tinha a sentença feita, outra vez. Mas já não podia ficar como adjunto. Mas aquilo que me movia era provar a mim mesmo do que era capaz, e fui capaz. Claro que senti que se perdoa sempre menos a quem é da casa. A verdade é que nenhum treinador é consensual, e havia aquela história de o Toni não ser treinador para o Benfica, e isso a mim ainda me dava mais força. Diziam que eu era defensivo… pois é, mas no ano dos 3-3 frente ao FC Porto, dos 4-4 em Leverkusen e dos 3-6 em Alvalade, era eu que estava no banco. Procurei sempre que as minhas equipas fossem sempre equilibradas, ofensiva e defensivamente. Esse foi sempre um fator que me guiou. Sem nunca descurar o espetáculo. Se eu puder ganhar por 5-4, é melhor que vencer 1-0. Prefiro ganhar a jogar bem, mas se tiver de vencer por 1-0 a jogar mal, não há problema, pois um treinador é sempre escravo do resultado, já dizia Mário Wilson.
Tem noção de que havia um “fantasma” Toni após a sua saída?
O futebol desencadeia sentimentos e paixões. O adepto vive de resultados e tem memória curta, pois, quando as vitórias não surgem, acabam logo por torcer o nariz. Mas é normal quando um treinador sai e sai a ganhar, e quando os que se seguem não ganham, seja recordado.
Qual foi o melhor jogador que treinou?
Que pergunta injusta, mas diria o Chalana, que eu já apanho numa fase complicada, depois da lesão. O futebol quando é jogado por artistas desta estirpe é muito mais bonito. Mal jogado é um desporto muito mau, mas quando é jogado por jogadores como Chalana…. Era um dos eleitos.
Uma história que nunca tenha contado…
Vou contar duas. Uma é referente ao Eusébio. Aquele remate que ele faz no final do tempo regulamentar da final com o Manchester (1968) e que poderia dar a vitória ao Benfica faz com ele tenha de ser operado. Nós íamos a uma digressão e, fruto de estar no contrato, ele tinha de entrar nesses jogos. Na Argentina, onde íamos ter um jogo, era inverno, e antes de ele entrar em campo era-lhe retirado líquido do joelho. Eu tinha 20 anos, e aquilo marcou-me muito. Nunca mais me saiu da cabeça essa imagem. Isto porque jogar com o Eusébio dava um cachet, jogar sem ele era outro. A outra história também tem que ver com essa digressão. No intervalo de um dos jogos, um elemento da direção do Benfica entra no balneário e diz para ninguém entrar para a 2.ª parte. O intervalo era de um quarto de hora, e já passavam 25 minutos, e nós sem entrar. A razão é que ainda não tinha sido pago o cachet, então tiveram de andar a retirar o dinheiro das bilheteiras e só quando a direção do Benfica recebeu o dinheiro é que nos foi dito para entrar.
O Benfica neste ano será campeão?
No ano passado senti que o Clube tinha um desafio muito grande pela frente, que era o Penta. Contudo, a saída de alguns jogadores e um jogo que não correu nada bem não o permitiram. Por isso partimos para esta época que todos os benfiquistas apelidamos de “Reconquista”. Porém, tivemos um primeiro objetivo que foi muito importante do ponto de vista financeiro e desportivo, a entrada na Liga dos Campeões. Esse apuramento pode-nos ter custado, em um ou outro jogo, alguns pontos, mas espero que não nos tenha afastado do nosso grande objetivo desta temporada. Sou muito pragmático e sei que a história do Benfica foi feita com as conquistas das Taças dos Campeões Europeus, mas sei também que nesta altura, do ponto de vista económico, há equipas que dão poucas hipóteses. Por isso espero que o Clube ganhe tranquilidade, que é muito importante, para que a equipa possa responder ao desafio. Acredito sempre até ao último dia.
“Diziam que eu era defensivo… pois é, mas no ano dos 3-3 frente ao FC Porto, dos 4-4 em Leverkusen e dos 3-6 em Alvalade, era eu que estava no banco”
Qual a sua opinião sobre Rui Vitória. É o homem certo?
Quem lidera tem de tomar decisões, como o presidente e o treinador, e é sempre dos alvos preferidos dos adeptos. Cada um deles dá o melhor para que a equipa possa seguir o seu caminho. Portanto, acredito em relação às opções do presidente que já definiu que Rui Vitória é o homem para o projeto. Todos os treinadores têm momentos menos bons, e Rui Vitória também os teve, mas tem demonstrado uma grande coerência. Quando os resultados não aparecem, há sempre contestação, mas esse não é o caminho a seguir.
O mundo do futebol é fértil em conhecimentos, mas muito parco em amizades. Quais aqueles que considera os melhores amigos do futebol?
Ao longo da minha carreira sinto que recebi muito dos adeptos do Benfica, mas também considero que fui mais transversal. Em função de saber ganhar e perder, de valorizar o adversário e conquistar o respeito e admiração, não só daqueles que tu defendeste, mas também o adversário. E eu sinto que ganhei esse respeito e admiração, fruto desse saber estar. Com defeitos também, não sou nenhum anjo. Muitas vezes me dizem que não são adeptos do Benfica, mas têm por muita admiração por mim, pelo respeito que tenho pelos outros. Isso é muito enriquecedor.
Entrevista: João André Silva e Frederico Costa Branco
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