Hans van Breukelen. Se este nome não lhe soa familiar, pense em Veloso. Já chegou lá? Pois é, Van Breukelen era o guarda-redes do PSV Eindhoven que defendeu o penálti do defesa português e acabou com o sonho do Benfica (e de Portugal) de se sagrar campeão europeu em 1987/88. Já lá vão 23 anos, mas todos se lembram do momento. Veloso atira para o seu lado esquerdo e Van Breukelen defende. É isso? É só isso? Não, claro que não. Van Breukelen tem uma memória de elefante e é o maior. Mesmo.
Mal o sorteio dos quartos-de-final da Liga Europa junta Benfica e PSV, a pergunta óbvia é por onde anda o herói Van Breukelen. O i sabe que ele esteve ligado ao Conselho Fiscal do PSV em 2009. Toca a ligar para a Holanda. Do PSV, atendem-nos em holandês, ou seja com berlindes na boca. Mal sabem eles que nós também desenvolvemos essa técnica. Dizemos Van Breukelen à holandesa e uma senhora simpática diz-nos que não pode dar o telefone, só o email. O i envia um email com perguntas ao guarda-redes e este nada. Passa um dia, dois, três e ao quarto, saved by the bell! Van Breukelen responde-nos, com classe. Explica que lhe podemos ligar no dia seguinte às 12h30 da Holanda. "Vou estar a conduzir, mas estou disponível. Abraço." É o maior, não é? Tirando aquela defesa ao penálti do Veloso, claro... O i liga-lhe à hora marcada e ele nada. Uma, duas, três, quatro vezes. Não vai a bem, vai por SMS. Ao que ele responde seis horas depois. "Call me now. Bye. Hans." Quando lhe ligamos, Van Breukelen surpreende-nos com uma voz circense: "And now, live from Portugal, Rui Miguel Tovar speaking. What''s up?" É o Hans, descontraído. E vai ser assim o tempo todo.
Van Breukelen, telefono...
Trata-me por Hans. É mais fácil, mais prático e pessoal. Ok, Rui?
Alright. Tens 11 títulos na carreira mas só começas a ganhar nos thirtysomething.
Sim, fui um trintão sortudo. Tens razão. Comecei no Utrecht, onde nasci, e lá fui aos poucos, sem ser muito exuberante. Aos 20 anos, na primeira época, só fiz um jogo. Aos 21, mais seis. Aos 22, afirmei-me.
Mas saíste do Utrecht aos 26. E logo para Inglaterra! Como é que um jogador, seja holandês ou o que for, troca de país em 1982?!
Entendo a tua pergunta, Rui. Foi um movimento atípico, mas a oportunidade surgiu e tinha de a aproveitar. Fui para o Nottingham Forest, que se sagrara campeão europeu dois anos seguidos, 1979 e 1980, para substituir o grande Peter Shilton [de malas aviadas para o Southampton] e para trabalhar sob as ordens de Brian Clough, um carismático treinador inglês, ainda hoje reconhecido em todo o mundo.
Nessa altura, o campeonato inglês já era como hoje o vemos, com os estádios cheios, os adeptos a cantar, apoiar e aplaudir?
Sim, sim. Aliás, a minha transferência do Utrecht para o Nottingham Forest também se deveu a essa alegria de espírito. Quando regressei à Holanda, dizia sempre que aquele silêncio era confrangedor. Os ingleses é que sabem divertir-se num jogo.
E porquê o regresso à Holanda?
Olha Rui, voltei a casa dois anos depois, porque o PSV Eindhoven me chamou e sobretudo porque o meu sonho era chegar à selecção holandesa.
Mas o Nottingham Forest proibia-te?
Sim.
What?
É verdade. O Brian Clough proibia-me de ir à selecção. "Para quê ir à selecção, com o risco de te lesionares, se quem te paga o ordenado somos nós?", perguntava, meio afirmativamente. Mas tudo bem, na boa. Diverti-me imenso em Nottingham, absorvi toda aquela mística, substituí o grande Peter Shilton e cheguei às meias-finais da Taça UEFA em 1983/84. Só não fomos à final porque o Anderlecht nos ganhou a segunda mão por 3-0, depois de ter perdido em Nottingham por 2-0. Anos depois, a UEFA descobriu que o árbitro do segundo jogo foi aliciado. Comprovou-se corrupção, mas já não se podia fazer nada.
E regressas à Holanda em 1984?
Sim, para o PSV.
Mas só cinco anos depois é que te transformas uma figura pública.
Ahahah, boa, boa.
Em 1988, defendes o penálti de Veloso (Benfica) na final da Taça dos Campeões em Estugarda e ainda o de Belanov (URSS) na final do Europeu de selecções em Munique. Penálti master, e em território inimigo (Alemanha). Há alguma explicação para esses dois momentos?
Há, e não é nenhuma ciência. Quer no PSV, quer na selecção, tínhamos um adjunto que estudava todos os pormenores dos adversários. Nos penáltis, eu já sabia mais ou menos a técnica dos marcadores. Só para veres, adivinhei os remates de Elzo e Hajry. Quando chegou o do Veloso, eu sabia que ele ia atirar para ali, àquela velocidade...
Mas como, seguindo que exemplo?
O exemplo de um jogo do Benfica no Verão do ano anterior [1987]. Acho que foi o Teresa Herrera, na Corunha. Nesse torneio, o Benfica ganhou ao Everton nos penáltis e também ganhou a final nos penáltis, ao Deportivo. Sim, acho que foi o Deportivo. Nesse desempate, o Veloso falhou um penálti, da mesma forma que falhou depois com o PSV. Para a minha direita, bola rasteira.
Sabias que os rivais do Benfica aqui em Portugal gozam com esse penálti?
A sério? Mas quem? Os adeptos de Sporting e FC Porto?
Sim. Dizem que PSV é a sigla Parabéns Senhor Veloso, qualquer coisa como Happy Birthday Mister Veloso.
Coitado do Veloso! Olha, cá para mim, é Parabéns Senhor Van Breukelen.
E o penálti do Belanov?
A mesma coisa, a mesma ciência, entre aspas claro. Baseámo-nos num penálti que ele tinha marcado no Mundial do México, dois anos antes. Se não engano, foi a Bélgica. Remate forte, para a direita do guarda-redes, como o Veloso, mas com força. Nesse caso, era preciso estar no sítio certo, ainda antes de a bola cair lá. Foi o que aconteceu. Mal o árbitro apitou e o Belanov começou a correr, mergulhei com convicção para o meu lado direito e a bola bateu-me nos punhos.
Costumas rever essas finais?
Estás a brincar? Sim, todos os anos.
E isso deixa-te orgulhoso?
Claro que sim. Repara, tinha 32 anos. Quando uma pessoa passa uma carreira inteira a subir, a subir e depois vê todo o esforço recompensado , é uma sensação única. Estava no céu. Sobretudo com a defesa do penálti do Veloso. Significou uma taça. Literalmente. Mas o que me orgulha mais é a reacção do Van der Sar, quando defende o penálti do Anelka em 2008, que dá a Liga dos Campeões ao Manchester United. Ele foi o herói e, ainda no relvado ou no balneário, já não me recordo bem, disse que eu tinha sido a sua inspiração. Que ele [Van der Sar] se tinha lembrado de mim, porque defendera o remate do Veloso. Isso foi o mais importante. Mexeu comigo, sabes?
Compreendo. E também te emocionaste com aquele golo do Van Basten nessa final do Euro-88, com a URSS?
Meu amigo, eu fui um espectador privilegiado daquele vólei. Ninguém viu aquele golo como eu. Aquilo não foi espectacular, nem fenomenal, muito menos extraordinário. Foi tudo isso elevado sei lá eu a quanto. Ficámos malucos. É bom quando se vê em campo o que praticámos nos treinos.
What?
Ahhhhhhh pois! O Van Basten fazia aquilo nos treinos da Holanda. Queríamos todos tomar banho, ele pedia-me para ficar à baliza, chamava quem quer que fosse para lhe cruzar a bola pouco depois do meio-campo e lá ia ele rematar daquele ângulo apertado. Ele foi aperfeiçoando esse gesto. É claro que tudo lhe saiu perfeito naquela tarde, mas isso também já acontecia de vez em quando nos treinos. E eu ali, tipo boneco, a levar com as bolas. Nesse dia foi o Dasaev. Livrei-me de boa...
Como é que a Holanda-88 campeã europeia é eliminada nos oitavos do Mundial-90 e não chega à final do Euro-92?
Em 1988 éramos uma grande e feliz família. Primeiro estava a equipa. Depois o indivíduo. Em 1990, já não foi assim. Alguns jogadores já jogavam para eles próprios. Em 1992 tivemos azar nas meias-finais com a Dinamarca. Eu não defendi nenhum penálti e, para cúmulo, o Schmeichel adivinhou o remate do Van Basten.
Como é que ele ficou depois do falhanço?
Não é preciso dizer, nem se explica por palavras. Tu imaginas, não imaginas?
Sim.
Agora potencia isso ao exagero e talvez entendas a frustração dele.
Voltando aos teus tempos no PSV. A vitória sobre o Benfica foi em 1988. No ano seguinte encontraram o FC Porto.
Ihhhhhh, isso foi 5-0 em Eindhoven. Que grande noite. Tudo nos saiu bem. Goleámos uma equipa bastante boa, que vencera a Taça dos Campeões no ano anterior ao nosso. No Porto - Antas não é? - perdemos 2-0. E com um golo do Rui Águas, não foi? Olha, só agora é que relacionei. Ele esteve na final de Maio de 1988 e depois nessa eliminatória, meio ano depois. Engraçado... Mas, como disse, ganhámos 5-0 e decidimos tudo na primeira mão, em casa.
Lembras-te dos golos e tudo?
Yup. Dois do Ronald Koeman, e nenhum de penálti. Ele era tramado. Dois dele, um do Kieft, um do Ellerman e outro do Janssen. Lembro-me da curiosidade de o Romário não ter marcado.
Romário. Pois foi, jogaste com ele. Como é que era?
[ri-se]... [continua a rir]... [não pára de rir]... Esse Romário... Eu não sei bem! É um ser humano tão porreiro mas, ao mesmo tempo, tão irritante [annoying]. Às vezes apetecia-me beijá-lo, outras esmurrá-lo. A sério! Ele era capaz de virar um jogo do avesso. E também era capaz de virar a nossa vida do avesso [atenção, vai começar outra vez a rir-se, é a melhor altura de lhe agradecer e desligar o telemóvel].
Foi um prazer, Rui.