A velha Catedral - Estádio da Luz

Jangada

Tenho tantas saudades. Do estádio e do meu falecido pai com quem tantas vezes fui à bola e aos treinos. Como era bonito o Benfica.

Jangada

A última enchente que o meu pai viu na velhinha Luz foi um jogo de selecção, curiosamente. Portugal - Estónia, Outubro de 2001, decisivo para estarmos pela primeira vez num mundial desde 1986.

Tenho fortes memórias desse final de tarde. Testemunhei coisas que deitam por terra quaisquer registos oficiais de lotação em dias de casa cheia.

Bilhetes comprados na velhinha sede da FPF, número 25 da Praça da Alegria. À Luz chegámos em cima da hora. Abarrotava de gente por dentro. E as filas, por fora, continuavam gordas. Vi seguranças que tentavam bloquear com os braços aquelas portas mais estreitas. "Aqui já não entra mais ninguém! Está cheio!", diziam. Mas a pequenada passava-lhes por baixo e seguiam caminho escadaria acima - várias sem bilhete.

Subimos nós também ao terceiro anel. Topo sul. Amontoavam-se pessoas não só nos bancos, mas nas escadas. Galgámos os degraus, num esforço de Aquiles para não pisar mãos e pés. Com destino ao único sítio onde caberíamos ainda: debaixo do velho marcador, do qual sobrava o férreo esqueleto.

Vimos o jogo em pé, encostados às vigas. A vitória foi tranquila. Como em tantas outras jornadas, o que mais fascinou o meu pai não foi tanto o jogo, mas o estádio.

Apanhei-o várias vezes distraído - com os corajosos que tentavam descer a pique até aos mictórios, soltando uns "com licença" e uns "dê só um jeitinho, amigo" pelo caminho; com os aviões de focinho alinhado pelo tarmac da Portela; com os que gritavam "ooooh, filho da puta!" a cada pontapé de baliza adversário (o eco do "pu-ta" fazia-o rir baixinho); com quem de casa tinha trazido o jornal, o rádio a pilhas e o boletim do Totobola para saber se os resultados dos outros jogos batiam certo (já sem o duplicado a papel-químico, creio).

Mas o que mais o apaixonava era o crepúsculo. Ver a noite cair sobre Lisboa, sobre aquele anfiteatro romano. O vento tornava-se áspero, as pontas dos nossos cachecóis badalavam, fechávamos os casacos, um miúdo deixava escapar o embrulho do gelado lá para baixo. Nos cantos, as torres de iluminação acendiam-se lentamente. Um holofote, outro e depois mais outro. Os jogadores ganhavam quatro sombras na relva, num ritual que absorvia por completo o meu pai. Dava-me um toque no cotovelo "olha, já viste?".

Já, pai. E quem me dera poder tê-lo visto mais vezes. Ali e contigo.

Miguel23xxx

Citação de: Jangada em 27 de Dezembro de 2021, 04:47
Tenho tantas saudades. Do estádio e do meu falecido pai com quem tantas vezes fui à bola e aos treinos. Como era bonito o Benfica.
também eu, sinto-me sozinho sem esse Benfica

Corpo Diplomático

Citação de: Jangada em 27 de Dezembro de 2021, 06:21
A última enchente que o meu pai viu na velhinha Luz foi um jogo de selecção, curiosamente. Portugal - Estónia, Outubro de 2001, decisivo para estarmos pela primeira vez num mundial desde 1986.

Tenho fortes memórias desse final de tarde. Testemunhei coisas que deitam por terra quaisquer registos oficiais de lotação em dias de casa cheia.

Bilhetes comprados na velhinha sede da FPF, número 25 da Praça da Alegria. À Luz chegámos em cima da hora. Abarrotava de gente por dentro. E as filas, por fora, continuavam gordas. Vi seguranças que tentavam bloquear com os braços aquelas portas mais estreitas. "Aqui já não entra mais ninguém! Está cheio!", diziam. Mas a pequenada passava-lhes por baixo e seguiam caminho escadaria acima - várias sem bilhete.

Subimos nós também ao terceiro anel. Topo sul. Amontoavam-se pessoas não só nos bancos, mas nas escadas. Galgámos os degraus, num esforço de Aquiles para não pisar mãos e pés. Com destino ao único sítio onde caberíamos ainda: debaixo do velho marcador, do qual sobrava o férreo esqueleto.

Vimos o jogo em pé, encostados às vigas. A vitória foi tranquila. Como em tantas outras jornadas, o que mais fascinou o meu pai não foi tanto o jogo, mas o estádio.

Apanhei-o várias vezes distraído - com os corajosos que tentavam descer a pique até aos mictórios, soltando uns "com licença" e uns "dê só um jeitinho, amigo" pelo caminho; com os aviões de focinho alinhado pelo tarmac da Portela; com os que gritavam "ooooh, filho da puta!" a cada pontapé de baliza adversário (o eco do "pu-ta" fazia-o rir baixinho); com quem de casa tinha trazido o jornal, o rádio a pilhas e o boletim do Totobola para saber se os resultados dos outros jogos batiam certo (já sem o duplicado a papel-químico, creio).

Mas o que mais o apaixonava era o crepúsculo. Ver a noite cair sobre Lisboa, sobre aquele anfiteatro romano. O vento tornava-se áspero, as pontas dos nossos cachecóis badalavam, fechávamos os casacos, um miúdo deixava escapar o embrulho do gelado lá para baixo. Nos cantos, as torres de iluminação acendiam-se lentamente. Um holofote, outro e depois mais outro. Os jogadores ganhavam quatro sombras na relva, num ritual que absorvia por completo o meu pai. Dava-me um toque no cotovelo "olha, já viste?".

Já, pai. E quem me dera poder tê-lo visto mais vezes. Ali e contigo.


https://www.youtube.com/watch?v=RZMCSfPSsvk&ab_channel=sp1873

Corpo Diplomático


RedVC

Citação de: Jangada em 27 de Dezembro de 2021, 06:21
A última enchente que o meu pai viu na velhinha Luz foi um jogo de selecção, curiosamente. Portugal - Estónia, Outubro de 2001, decisivo para estarmos pela primeira vez num mundial desde 1986.

Tenho fortes memórias desse final de tarde. Testemunhei coisas que deitam por terra quaisquer registos oficiais de lotação em dias de casa cheia.

Bilhetes comprados na velhinha sede da FPF, número 25 da Praça da Alegria. À Luz chegámos em cima da hora. Abarrotava de gente por dentro. E as filas, por fora, continuavam gordas. Vi seguranças que tentavam bloquear com os braços aquelas portas mais estreitas. "Aqui já não entra mais ninguém! Está cheio!", diziam. Mas a pequenada passava-lhes por baixo e seguiam caminho escadaria acima - várias sem bilhete.

Subimos nós também ao terceiro anel. Topo sul. Amontoavam-se pessoas não só nos bancos, mas nas escadas. Galgámos os degraus, num esforço de Aquiles para não pisar mãos e pés. Com destino ao único sítio onde caberíamos ainda: debaixo do velho marcador, do qual sobrava o férreo esqueleto.

Vimos o jogo em pé, encostados às vigas. A vitória foi tranquila. Como em tantas outras jornadas, o que mais fascinou o meu pai não foi tanto o jogo, mas o estádio.

Apanhei-o várias vezes distraído - com os corajosos que tentavam descer a pique até aos mictórios, soltando uns "com licença" e uns "dê só um jeitinho, amigo" pelo caminho; com os aviões de focinho alinhado pelo tarmac da Portela; com os que gritavam "ooooh, filho da puta!" a cada pontapé de baliza adversário (o eco do "pu-ta" fazia-o rir baixinho); com quem de casa tinha trazido o jornal, o rádio a pilhas e o boletim do Totobola para saber se os resultados dos outros jogos batiam certo (já sem o duplicado a papel-químico, creio).

Mas o que mais o apaixonava era o crepúsculo. Ver a noite cair sobre Lisboa, sobre aquele anfiteatro romano. O vento tornava-se áspero, as pontas dos nossos cachecóis badalavam, fechávamos os casacos, um miúdo deixava escapar o embrulho do gelado lá para baixo. Nos cantos, as torres de iluminação acendiam-se lentamente. Um holofote, outro e depois mais outro. Os jogadores ganhavam quatro sombras na relva, num ritual que absorvia por completo o meu pai. Dava-me um toque no cotovelo "olha, já viste?".

Já, pai. E quem me dera poder tê-lo visto mais vezes. Ali e contigo.

Lindo.

Tal como tu, o amor à Catedral está para mim completamente ligado à memória de meu pai. Por lá fomos muitos felizes. Saudades tremendas, pela sua falta e por vivermos estes dias de chumbo.

IPASLB

Devo ser um caso á parte nas idas ao antigo Estádio da Luz, quase sempre ia com amigos (desde os meus 11/12 anos) e depois pedíamos aos sócios maiores de idade para entrarmos com eles, lá dentro encontrávamos todos num sítio combinado, raramente fui com sócios pais de amigos meus.

Outros tempos em que o SLB e o Estádio da Luz metiam medo até aos melhores clubes da altura.

Phils

Que inveja tenho ao ler essas recordações.

As que tenho são as de um miudo que cresceu aqui em Paris e nunca viu um jogo na velha Luz.
Lembro-me de a visitar, mas infelizmente nunca pude vê-la cheia e viver isso que vocês descrevem.

Gsound

Citação de: IPASLB em 14 de Dezembro de 2021, 22:52
Citação de: slbsam94 em 14 de Abril de 2021, 21:19
Citação de: _JonasThern_ em 11 de Dezembro de 2011, 19:43
Um dos três maiores do Mundo. O 1º era o Maracanã, o 2º o Camp Nou e o 3º o nosso Estádio da Luz. Isto diz muito acerca desta obra de arte.
O estadio da luz era mais grande que o camp nou...120000> 98000

Havia o Castelão do Ceará, dizia-se que a capacidade era de 150.000, o terceiro era o do SLB.


No início de 90's acho que só maracanã e morumbi tinham maior capacidade.

dfernandes

Citação de: Jangada em 27 de Dezembro de 2021, 06:21
A última enchente que o meu pai viu na velhinha Luz foi um jogo de selecção, curiosamente. Portugal - Estónia, Outubro de 2001, decisivo para estarmos pela primeira vez num mundial desde 1986.

Tenho fortes memórias desse final de tarde. Testemunhei coisas que deitam por terra quaisquer registos oficiais de lotação em dias de casa cheia.

Bilhetes comprados na velhinha sede da FPF, número 25 da Praça da Alegria. À Luz chegámos em cima da hora. Abarrotava de gente por dentro. E as filas, por fora, continuavam gordas. Vi seguranças que tentavam bloquear com os braços aquelas portas mais estreitas. "Aqui já não entra mais ninguém! Está cheio!", diziam. Mas a pequenada passava-lhes por baixo e seguiam caminho escadaria acima - várias sem bilhete.

Subimos nós também ao terceiro anel. Topo sul. Amontoavam-se pessoas não só nos bancos, mas nas escadas. Galgámos os degraus, num esforço de Aquiles para não pisar mãos e pés. Com destino ao único sítio onde caberíamos ainda: debaixo do velho marcador, do qual sobrava o férreo esqueleto.

Vimos o jogo em pé, encostados às vigas. A vitória foi tranquila. Como em tantas outras jornadas, o que mais fascinou o meu pai não foi tanto o jogo, mas o estádio.

Apanhei-o várias vezes distraído - com os corajosos que tentavam descer a pique até aos mictórios, soltando uns "com licença" e uns "dê só um jeitinho, amigo" pelo caminho; com os aviões de focinho alinhado pelo tarmac da Portela; com os que gritavam "ooooh, filho da puta!" a cada pontapé de baliza adversário (o eco do "pu-ta" fazia-o rir baixinho); com quem de casa tinha trazido o jornal, o rádio a pilhas e o boletim do Totobola para saber se os resultados dos outros jogos batiam certo (já sem o duplicado a papel-químico, creio).

Mas o que mais o apaixonava era o crepúsculo. Ver a noite cair sobre Lisboa, sobre aquele anfiteatro romano. O vento tornava-se áspero, as pontas dos nossos cachecóis badalavam, fechávamos os casacos, um miúdo deixava escapar o embrulho do gelado lá para baixo. Nos cantos, as torres de iluminação acendiam-se lentamente. Um holofote, outro e depois mais outro. Os jogadores ganhavam quatro sombras na relva, num ritual que absorvia por completo o meu pai. Dava-me um toque no cotovelo "olha, já viste?".

Já, pai. E quem me dera poder tê-lo visto mais vezes. Ali e contigo.

Tenho esse jogo gravado e até convertido. Quando tiver mais tempo partilho.

Labo411

Este tópico é de longe o que mais tive prazer em navegar
Obrigado aos participantes por compartilhar suas (e nossas) memórias.

Bleach

A destruição deste estádio foi o início da destruição do Benfica verdadeiro. O início dos pato bravos e tricolores.

24-7SLB

Citação de: IPASLB em 28 de Dezembro de 2021, 14:48
Devo ser um caso á parte nas idas ao antigo Estádio da Luz, quase sempre ia com amigos (desde os meus 11/12 anos) e depois pedíamos aos sócios maiores de idade para entrarmos com eles, lá dentro encontrávamos todos num sítio combinado, raramente fui com sócios pais de amigos meus.

Outros tempos em que o SLB e o Estádio da Luz metiam medo até aos melhores clubes da altura.

Somos dois, apenas fui uma vez com o meu pai, no jogo em que vencemos 6-0 o Beitar de Jerusalém.


Harlem

Uma das minhas maiores tristezas como Benfiquista é não ter presente na memória a minha única visita à Luz antiga, tinha uns 4 anos.

Carminati

Eu tenho na memória de andar a ver os estragos (as poucas zonas de cadeiras todas partidas, grafitis, vidros partidos) no estadio Luz, após a mitica final do mundial de juniores.
Deve ter sido mesmo a maior enchente de sempre.