Após 10 anos ao leme do sector mais escaldante do futebol português, Vítor Pereira está de malas feitas para sair do gabinete 23 da recém-inaugurada Cidade do Futebol. Em entrevista exclusiva ao Expresso, o ex-presidente do Conselho de Arbitragem diz que a partir de hoje é um homem livre e garante que deixa o cargo mas não a arbitragem, a sua vida. Em dia de eleições na Federação Portuguesa de Futebol, deseja felicidades ao seu sucessor, José Fontelas Gomes, que espera continue o seu legado. Aos 59 anos, o dirigente mal-amado por Pinto da Costa e Bruno de Carvalho, garante não guardar animosidade pessoal contra qualquer dirigente, apesar da tristeza causada por alguns excessos.
Uma década ao leme do sector mais polémico do futebol é muito tempo? Um recorde?
Não sei, nem é importante. Foi o que foi, numa altura difícil de passagem da arbitragem da Liga, onde estava desde 1995, para a FPF, em 2011. Mudança que obrigou a ajustes regulamentares e a trabalhar não com um universo de 80 árbitros/assistentes mas com os de todas as competições nacionais.
Sai por saber que não seria convidado a recandidatar-se?
Não. A vida é feita de ciclos. Este fechou-se, até por ser uma função muito exigente do ponto de vista pessoal e físico. Este CA tinha 40 linhas programáticas, saímos com todas cumpridas. Criámos centros de treino que permitem a todos os árbitros treinar de forma regular, temos um plano de formação sistematizado para todo o país, um grupo de árbitros profissionais, uma das minhas batalhas e que deve ser alargado a todos os árbitros das provas da Liga...
Mas não temos um árbitro no Europeu de 2016...
O Pedro Proença seria o nosso árbitro natural no Euro, mas o seu abandono precoce criou um vazio. Foi um episódio que nos surpreendeu. Não é de um momento para o outro que se acede ao grupo de elite da FIFA. Há 300 árbitros internacionais, em França estarão 24. O processo é muito seletivo.
Agora, o melhor é Artur Soares Dias?
Ele e o Jorge Sousa. Ambos teriam condições para estar no Euro e têm condições para chegar ao Mundial de 2018.
Já sabe o que vai fazer a seguir?
Vou descansar, se calhar escrever.
Não ambiciona dar o salto para a esfera da UEFA ou da FIFA?
Neste momento, sou um homem livre. Acho que tenho know-how que me permite encarar eventuais convites. Deixo o cargo, não a arbitragem. É a minha vida.
Qual é o seu maior legado?
Quando chegámos, em 2006, tínhamos um grupo de árbitros estigmatizado, hoje há mais árbitros, mais jovens e mais bem preparados. Temos uma Academia Formativa. O abandono dos candidatos a árbitros era de 60% e passou para 20%, porque temos um sistema de tutoria para os acompanhar.
Ainda há crise de vocação?
Num contexto muito agreste, em especial nos últimos dois anos, conseguimos um aumento de 9,9% de árbitros, entre futebol e futsal.
A que se deve o clima de maior agressividade?
Às políticas de comunicação das organizações, devido às novas plataformas digitais, ao Facebook... Está tudo muito aberto, o que leva a excessos numa sociedade de clubismo incontrolado. E este clima adverso é extravasado para a arbitragem.
O que é que identifica de pior na sua gerência?
Este clima de tensão causa-me tristeza, em alguns casos ultrapassa o mínimo de respeito que se deve ter pelas pessoas e instituições.
No “Tribunal do Dragão” diz-se que merece sair em ombros por ter ajudado o Benfica a ser campeão...
Quantas vezes é que o FC Porto foi campeão nos meus mandatos? Seis! O presidente do CA foi o mesmo, tal como os critérios adotados. Este CA geriu a arbitragem de dentro para fora e pelas nossas cabeças.
As queixas também são do Sporting. Octávio Machado diz que o 35º título do Benfica é de Vítor Pereira.
Não respondo.
É verdade que telefonou a Marco Ferreira para dar um jeitinho ao Benfica?
As questões relacionadas com o senhor Marco Ferreira vão ser resolvidas nas instâncias desportivas e no tribunal.
Ele foi despromovido por isso?
Foi despromovido em função da sua classificação.
Nada teve de pessoal?
Não, nem podia ter. Pelos estatutos, o presidente do CA não tem interferência no processo classificativo, que tem uma secção específica para esse efeito. E nenhum membro que não pertença a essa secção tem acesso às classificações.
Porque insistiu na escolha de Bruno Paixão para os jogos do Benfica quando sabia que ia ser atacado pelo Sporting e pelo FC Porto? Para mostrar que tinha razão?
Parecia que estava a adivinhar a pergunta. Como já disse, o CA é dirigido de dentro para fora e não ao contrário. Era uma grande presunção de quem do exterior conseguisse influenciar as nossas decisões. Por alguém dizer que não gostava de um árbitro, o CA ia deixar de o indicar? Nunca trabalhámos assim, mas com rigor e cumprindo os critérios predefinidos, independentemente das tentativas de nos condicionar e aos próprios árbitros.
Este tipo de pressão não acontece em todos os campeonatos?
Mais no sul e no leste da Europa. Nos países do norte, ninguém se preocupa com os árbitros, mesmo quando são prejudicados.
Luís Filipe Vieira, Pinto da Costa ou Bruno de Carvalho nunca lhe telefonaram?
Nunca. Tínhamos uma figura regulamentar em que os clubes podiam e podem pedir uma reunião, por nós vista como um encontro de trabalho. E isso aconteceu com quase todos os clubes das duas ligas profissionais. Tive muito gosto em recebê-los na sede da Liga e na FPF. Foram sempre trocas de opiniões proveitosas.
Queixavam-se do quê?
Insucesso nos desempenhos dos árbitros, sentiam-se prejudicados. Umas vezes tinham razão, outras não. Os árbitros erram. Ponto final. A nossa relação com os clubes foi sempre de transparência e respeito.
Pedro Proença, como líder da Liga, não devia ter pedido contenção mais cedo em relação à contestação do FC Porto e do Sporting?
Pois. Se calhar, devia, mas não sei se serviria de grande coisa.
Como está o seu processo contra Bruno de Carvalho?
Qual processo? Todas as afirmações que configuram ilícito disciplinar foram por mim denunciadas e enviadas para o Conselho de Disciplina, mas isso foi feito com todos os dirigentes.
E a nível cível?...
Não instaurei qualquer processo, mesmo quando entendi que os ataques verbais eram excessivos. Acho que devem ser as instâncias jurisdicionais da FPF a resolver as contendas. Não tenho com nenhum dirigente qualquer animosidade pessoal.
Os famosos vouchers da Luz são uma tentativa de suborno?
As instâncias disciplinares decidiram que não houve sinal de irregularidade. As lembranças aos árbitros estão reguladas, seguindo o Código de Ética da UEFA [cerca de €183].
Recebeu algum presente que tenha devolvido?
Não.
Foi mais fácil ser árbitro ou ser dirigente?
Foi muito mais fácil ser árbitro. Arbitrar é um ato sublime. Quando entramos dentro de campo, as coisas dependem de nós a cada segundo. Como presidente do CA, estamos nas mãos de muitas pessoas. Tinha mais prazer em correr 10 a 12 quilómetros por jogo do que em ficar em casa 90 minutos sentado no sofá a ver jogos pela televisão. Nestes anos, vi quase todos os jogos que foram transmitidos. Era a partir dessa observação e da dos colegas que iam aos estádios que se decidiam as nomeações. Além das conversas que eu tinha com os árbitros.
A que jogos assistia ao vivo?
Não ia ver jogos. Vou aos das seleções. Recebi convites até para acompanhar as equipas ao estrangeiro, mas entendi que não deveria aceitar. Nalguns casos com pena, pois tinha vontade de ir, por serem convites simpáticos. Mas achei melhor manter a neutralidade.
José Fontelas Gomes, o seu sucessor, é o homem certo para o lugar?
Desejo-lhe muitas felicidades. Que continue o nosso legado. Somos colegas e tivemos boas relações institucionais ao longo do tempo.
O facto de ele não ter sido árbitro de 1ª categoria — é internacional de futebol de praia — e nunca ter apitado jogos dos grandes é uma vantagem?
É uma desvantagem por não ter o carisma de um internacional de topo, mas pode ter a vantagem de olhar para a arbitragem de forma mais aberta. O mais importante é que foi árbitro e tem o apoio da classe.
Umas das propostas de Fernando Gomes para o seu novo mandato é a publicação dos relatórios dos árbitros após cada jornada. Isso irá pacificar a arbitragem?
Duvido, mas não vejo inconveniente em que sejam tornados públicos.
Então, porque é que eram secretos até agora?
É uma pergunta a que não lhe posso responder. Era a regulamentação vigente.
As notas dos observadores jogo a jogo também devem ser públicas?
A questão não é essa, em primeiro lugar porque a UEFA e a FIFA não o permitem...
Só as avaliações finais?
Nem essas.
Sabe-se na mesma...
Nós cá estamos quase a transformar a arbitragem num reality show. Só falta entrar em sítios mais inadequados. Quanto mais forem públicas coisas acessórias, menos importância se dá ao fundamental, que é o jogo, os jogadores, a promoção da atividade...
Duarte Gomes defende que tornar tudo público deixa menos campo à suspeição...
Estamos a falar de um espetáculo. Hollywood vende filmes, não o behind the scene. Os bastidores são curiosidades. Subscrevo o que diz Ángel María Villar, presidente da Federação Espanhola e da UEFA em exercício: transparência sim, mas há coisas que só devem ser transparentes para dentro da organização.
Concorda com o vídeo-árbitro?
Vai ser testado na Supertaça, e julgo que pode ajudar. Sempre fui a favor de novas tecnologias que reduzam a margem de erro dos árbitros.
http://expresso.sapo.pt/desporto/2016-06-05-Vitor-Pereira-Nunca-recebi-um-telefonema-de-Vieira-Pinto-da-Costa-ou-Bruno-de-Carvalho