O autocarro do Benfica já tinha chegado ao Estádio Nacional. Apesar dos golpes recentes (Liga Europa e campeonato perdidos em poucos dias), a onda encarnada continuava assinalável. Os minutos passaram sem qualquer sinal do autocarro vimaranense, que já estava atrasado para a final da Taça de Portugal de 2013. Parecia coisa de amadores, mas não era.
Rui Vitória fala do episódio no livro «A Arte da Guerra para Treinadores», editado pela TopBooks em dezembro de 2014. «Sabia que a claque do Benfica tinha ficado, por sorteio, junto à entrada dos balneários. Por isso tivemos a preocupação de chegar ao estádio depois do Benfica. Tínhamos tudo controlado e, inclusive, o autocarro do Vitória parou numa estação de serviço, não para abastecer, como muitas pessoas pensaram, mas apenas para queimar tempo.»
Rui Vitória é o primeiro a admitir que se «inclina excessivamente» para «aspectos psicológicos e contextuais» que rodeiam o jogo.
É por aqui que começa o jogo das diferenças com Jorge Jesus, o homem a quem sucede no Benfica e que é conhecido por ser obcecado pela tática.
Jesus impulsivo, Vitória tranquilo
Angel, antigo defesa esquerdo, foi o primeiro jogador a ser treinado por Jorge Jesus e por Rui Vitória. Tinha 19 anos quando trabalhou com Jesus, nas pré-épocas de 1998/99 e de 1999/00, no Estrela da Amadora, altura em que não convenceu o agora técnico do Sporting. «Era muito rígido nos treinos, tanto ao nível tático como físico. Treinávamos muito as saídas nas bolas paradas dos adversários e lembro-me de uma situação que se passou com o Kennedy num jogo com o Sporting. Na altura de sair, ele escorregou e o Sporting acabou por marcar e ele não perdoou», recorda em conversa com o Maisfutebol.
Jesus foi tão intolerante que tirou Kennedy instantes após o golo que deu o empate ao Sporting nesse jogo a contar para a 4.ª jornada da Liga. Pior: nas quatro jornadas seguintes não há registo dele.
Jorge Jesus e Rui Vitória antes da final da Taça da Liga de 2010/11. O Benfica venceu por 2-1
Do Estrela da Amadora, de Jesus, Angel seguiu para o Vilafranquense, da II divisão B, onde esteve várias temporadas, entre as quais a de 2002/03, a primeira de Vitória enquanto treinador.
«O Rui Vitória era mais cuidadoso na forma como falava com os jogadores. Criou uma boa relação connosco. Nesse aspeto era mais próximo de nós do que Jorge Jesus. Interessava-se pelas novas vidas. Tinha preocupação em ajudar quem estivesse a passar por problemas familiares, até porque sabia que isso tinha influência no rendimento desportivo», recorda.
Manuel José é outro dos poucos jogadores que foram orientados pelos dois treinadores. Jesus em Guimarães na primeira metade da época de 2002/03 e Vitória, no Paços, em 2010/11.
Fala de um episódio antes da final da Taça da Liga em 2011 (perdida por 2-1 frente ao Benfica de Jesus), que comprova o interesse do novo timoneiro das «águias» pela componente psicológica. Era um vídeo motivacional com fotografias nossas, das nossas namoradas e de familiares. Não estávamos à espera e ficámos emocionados. Isso deu-nos força.»
O extremo pacense, de 34 anos, corrobora a opinião de Angel sobre a fama de Jesus ser pouco tolerante para com o erro: «O Rui Vitória é mais e não é tão agressivo no banco. Até é brincalhão: nas vésperas dos jogos fazia meinhos connosco nos treinos. Jesus não fazia isso, mas não quer dizer que fosse distante. Até estava sempre disponível para falar connosco no gabinete», recorda.
Rui Vitória com Pizzi, nos tempos do Paços de Ferreira. Voltam a cruzar-se agora na Luz
Vitória até pode ser brincalhão, mas não excessivamente. Até porque sente que o lugar dele não é, metaforiza, «no meio das árvores». «Há treinadores que são muito próximos dos jogadores, mas eu sinto-me mais confortável numa posição um pouco mais exterior», explica o treinador no livro «A Arte da Guerra para Treinadores». E justifica: «A vantagem desta posição é conseguir ter uma maior capacidade de análise e intervir quando considero que é necessário.»
Nuno Assis, que trabalhou com Rui Vitória em 2011/12, na primeira de quatro épocas do técnico ribatejano ao serviço do V. Guimarães, conta que este tinha menos conversas individuais com os jogadores do que o seu antecessor no comando técnico do Benfica, mas destaca-lhe uma característica que o diferencia. «Tinha uma coisa muito boa: queria saber a opinião dos jogadores sobre os jogos anteriores, principalmente quando corriam menos bem. Porquê? Queria estar dentro do que nós pensávamos, se nos sentíamos confortáveis e o que podia ser feito para melhorar.»
A jogar atualmente no Omonia, do Chipre, Nuno Assis fala de dois treinadores com «personalidades muito fortes» mas distintas. «Sabem bem o que querem e não se deixam influenciar. São muito exigentes, mas o Jesus é mais. Quer que as coisas sejam perfeitas e já era muito mais intenso quando fui treinado por ele [n.d.r.: no V. Guimarães em 2002/03]. O Rui Vitória é uma pessoa super tranquila», diz.
A aposta na formação
É uma das mudanças prometidas por Luís Filipe Vieira. Na próxima época, o plantel principal do Benfica terá cinco jogadores oriundos da formação. «Quero um treinador ganhador, que não tenha medo de apostar nos nossos jovens, que seja capaz de construir um projeto integrado da formação até ao futebol profissional», disse o presidente dos encarnados à margem de um jantar com deputados, a 4 de junho, numa clara mensagem a Jorge Jesus, cuja aposta nos jovens do Seixal não foi mais do que residual.
A escolha recaiu sobre Rui Vitória, que na última época conduziu o clube da Cidade Berço às competições europeias com um dos planteis mais inexperientes em prova. «Tenho quase a certeza que a grande maioria dos treinadores da primeira liga não queria os jogadores da minha equipa para os seus plantéis no início da época», disse a 17 de maio, após o último jogo do campeonato.
Nuno Assis reage com reservas quando questionado se o novo Benfica terá mais jovens oriundos da formação encarnada. «Isso vai depender da situação que encontrar. No Vitória ele estava obrigado a apostar nos jovens por causa da situação do clube», aponta.
Mais provável será a alteração do desenho tático. «O Rui Vitória sempre jogou em 4-3-3», sublinha Manuel José.
A próxima etapa
Rui Vitória chega ao Benfica depois de um percurso sempre em crescendo. Iniciou-se no Vilafranquense, da II divisão B, passou pelo futebol de formação, pela II Liga e chegou ao principal escalão em 2010, pela porta do Paços de Ferreira. Tudo na carreira dele foi planeado, embora assuma alguma surpresa com o seu percurso: «Nunca pensei que chegasse a fazer uma carreira de treinador como a que estou a fazer», conta em «A Arte da Guerra para Treinadores».
Até a ida para o Benfica, onde orientou os juniores do clube entre 2004 e 2006, foi pensada ao detalhe, onde ficou apenas dois anos para não ficar com o rótulo de treinador de miúdos. «Tive convites de clubes da II divisão, mas achei que precisava de saber como é que pensava o jogador de uma equipa grande. (…) Acho que nós, treinadores, devíamos ter um percurso muito mais gradual do que às vezes acontece», disse no mês passado durante um evento sobre futebol, na Faculdade de Motricidade Humana, onde estudou.
A próxima etapa desse tal percurso gradual leva-o ao Benfica, onde chega aos 45 anos, 13 depois de ter trocado, de um dia para o outro (literalmente), a carreira de futebolista no Alcochetense pela de treinador, no Vilafranquense.
Manuel José não tem dúvidas de que está preparado para liderar o futebol dos encarnados «Já nos Paços, há três/quatro anos, eu acreditava que ele tinha capacidade para isso. Já via nele potencial para isso. E agora, no V. Guimarães a passar por uma fase difícil, fez aquilo que fez», aponta.
Também Nuno Assis acredita que Rui Vitória tem condições para ser bem sucedido e atenuar os possíveis efeitos negativos da saída de Jorge Jesus do comando técnico das águias. E sustenta: «Nos últimos três anos fez sempre grandes trabalhos com pouca matéria-prima. Acho que tem todas as condições para fazer um grande trabalho», antecipa.
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