Vanessa Fernandes: “Ainda tenho uma história para escrever no desporto”

O corpo disse basta. A cabeça idem. Não dava mais. Vanessa Fernandes, porventura a melhor atleta de triatlo da história, foi vice-campeã olímpica em 2008, em Pequim, mas depois quebrou e afastou-se do desporto. Sentia-se a fraquejar, a desiludir quem a rodeava. Precisava de se arrumar e valorizar.

 

Mas o que lhe dá “pica” é mesmo o desporto e competir, por isso voltou. E com outro chip, depois de mudar de treinador: tentou a maratona. Em novembro, em Valência, a atleta conseguiu os mínimos para os Jogos Olímpicos 2016. Acabou por ser suplente de Sara Moreira, Vanessa Augusto e Dulce Félix. Aos 30 anos, Vanessa Fernandes diz que ainda falta fechar uma gaveta, há história por escrever, por isso pisca o olho à maratona em Tóquio 2020. O Observador falou com ela no Rio de Janeiro.

 

Há pouco estava a mandar umas bocas ao Fernando Pimenta. Estando por fora, sendo suplente, a Vanessa é aquela espécie de jogador de balneário, que puxa a moral para cima?
Claro que sim! Eu acho que é mesmo isso, é união, força, espírito positivo. É o que cria ainda mais força dentro da equipa do país. Se não vou correr, felizmente porque todas elas estão bem [a conversa com o Observador foi na véspera da maratona], o meu contributo é ainda mais esse. Sempre fui assim. Já que não estou tão focada em mim, ao menos foco-me neles. Para dar um empurrão.

 

E como estão eles?
Eu acho que temos muita qualidade e muito talento na comitiva. Temos, além de tudo, atletas super-ambiciosos. Temos um país que, eu sinto cada vez mais, tem atletas muito trabalhadores, muito ambiciosos e com muita qualidade. Para o pequeno país que temos e para a cultura desportiva que há, temos de lhes tirar o chapéu, porque fazem coisas fenomenais. Temos uma qualidade muito grande entre os atletas.

"Eu acho que o meu percurso ainda não acabou, ainda tenho uma história para escrever e contar aqui no desporto"

 

Puxando o filme atrás. Sobre a pausa, gostaria de saber porque é que…
Eu estou aqui de repente!?

 

Por exemplo…
Todos os sinais e coisas que me têm acontecido eu acabo por guardá-las para mim mesma. Eu acho que o meu percurso ainda não acabou, ainda tenho uma história para escrever e contar aqui no desporto. Sobre a minha vinda cá: acaba por ser por mérito meu. Mas não competindo, acaba por ser um sinal de que não devo fechar a porta e devo continuar naquilo que eu sempre acreditei. Por isso, é mais um abrir de uma nova etapa e novo ciclo que vou ter. Se calhar agora vejo de outra forma, se calhar agora vejo os Jogos de uma forma que nunca vi. Se calhar dou mais importância à minha medalha do que dava há oito anos.

 

Porquê?
Eh, pá, não sei. Estão aqui os melhores… dos melhores. De sempre. Eles estão aqui na melhor forma que há. Isto só existe de quatro em quatro anos, daqui saem os atletas que vão ficar registados para sempre na história do desporto e dos Olímpicos. Estares aqui e registares a tua própria marca é qualquer coisa. Eu já consegui isso. Às vezes devia orgulhar-me mais. Às vezes esqueço-me um bocado…

"Estares aqui nos Jogos e registares a tua própria marca é qualquer coisa. Eu já consegui isso. Às vezes devia orgulhar-me mais. Às vezes esqueço-me um bocado..."

 

Como é que um “animal competitivo” passa tantos dias sem competir?
Ahhhhhhh… Foi doloroso. Super doloroso. Mas não podia mesmo. Havia coisas que tinha de fechar em mim, havia coisas que tinha de resolver comigo mesma. Mesmo sabendo que estava quase a ser uma desilusão para mim mesma, uma desilusão para todos aqueles que me apoiaram. Era estar a fraquejar e nunca o fiz. Eu meti a pressão a mim mesma, não eram tanto as pessoas. Eu metia em mim. Foi complicado dizer não. Tens de deixar de competir, não podes mais. Eu precisava mesmo de deixar de competir. Precisava mesmo de me afastar um bocado das pessoas e desse movimento todo. O querer é muito grande. O percurso até lá vai ser duro. Vai ser difícil, mas o sonho é esse. O objetivo é esse.

 

 

 

Viajou durante a pausa? Viu pessoas que queria ver?
Fiz um bocado isso. Liguei-me mais às pessoas, liguei-me mais a amigos. Consegui realizar algumas amizades. Liguei família a família. Comecei a ligar a pormenores, que a própria vida tem, que eu não ligava muito. Achava que não era preciso. Liguei-me a mim mesma. À minha vida, à minha realização pessoal, muito para além do desporto. Sempre vou achar que essa é a minha adrenalina, a minha pica. Acabei por fazer outras coisas, que me fizeram bastante falta na altura.

 

O que foi possível fazer que não era possível enquanto atleta de alta competição?
Sabes que, mesmo durante aquele tempo todo, acabas por pensar que queres lá estar. Torna-se uma coisa mesmo complicada. Até estando um bocado mais livre, vais aqui, sais com os amigos, às vezes tens umas férias, parece que sentes que não é aquilo. Tens alguma coisa para concluir. Tens alguma coisa para fazer ainda. Parece que ainda não há aquele alívio de missão terminada.

 

Um fechar de gaveta…
Tal e qual! Por muito tempo que eu estivesse afastada, sinto que há qualquer coisa aqui que eu tenho de terminar.

"Liguei-me mais às pessoas, liguei-me mais a amigos. Consegui realizar algumas amizades. Liguei família a família. Comecei a ligar a pormenores..."

 

E a história de mudar de chip para a maratona?
Aconteceu. Troquei de treinador [Paulo Colaço], ele era mais ligado ao atletismo. E como eu tinha algum jeito para a corrida (risos)… Depois a maratona aconteceu, foi mesmo uma experiência. Nem houve grande treino. Houve uma coisa super simples apenas para terminar. Na altura dizia que não aguentava uma maratona, achava que era exagerado. Era uma loucura — ainda acho isso. É por isso que tenho de fazer umas contas até me adaptar. Fiz a primeira e aconteceu o que aconteceu. É muito devido ao meu espírito e maneira de estar.

 

Daqui a quatro anos é certinho que teremos a Vanessa Fernandes na maratona de Tóquio 2020?
Não sei. Primeiro preciso de fazer mais uma ou duas maratonas. Gostava de estar melhor do que estive na última. Depois daí logo vejo. Tenho é de saber guiar-me bem e saber fazer as coisas certas para o meu objetivo daqui a quatro anos.

"Sinceramente... o que ela fez... não me arrependo. Como ela é, como ela foi... Se ela não fosse daquela forma nunca tinha feito o que conseguiu. Se calhar ela podia ter parado ali a seguir a 2008"

 

Depois de tudo, qual era o conselho que davas à Vanessa de 14 anos que começou no triatlo?
Sinceramente… o que ela fez… não me arrependo. Como ela é, como ela foi… Se ela não fosse daquela forma nunca tinha feito o que conseguiu. Se calhar ela podia ter parado ali a seguir a 2008 — eu vou ser sempre assim, não há volta a dar. Ou 2004. E fazer logo ali uma pausa. Eu acho que era preciso, é sempre preciso: um ano olímpico e depois uma pausa.

 

Por não haver energia, por estar esgotada mentalmente?
Acho que sim, para descomprimires e estares contigo mesmo. É bom saberes estar contigo, conheceres-te, amadureceres. Sou mulher, sou alguém que, além de tudo, gosta de se cuidar e de estar bem consigo mesma. Se calhar foi desse processo que desliguei um bocado. Espero, daqui por uns anos, conseguir mostrar e dizer como foi a realidade da história toda, para poder inspirar muitas pessoas.

 

 

http://observador.pt/especiais/vanessa-fernandes-ainda-tenho-uma-historia-para-escrever-no-desporto/