Decifrando imagens do passado

faneca_slb4ever


RedVC

#91
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O primeiro guardião

Pedro Guedes

(8/11/1874 - 07/07/1961)

Dois instantes da vida de Pedro Guedes, futebolista, pintor e professor de Desenho da Casa Pia.

A primeira fotografia reporta-se à sua actividade de grande futebolista e capitão das vitoriosas equipas pioneiras da Casa Pia. Essa excelente equipa teve actividade na última década do século XIX. Ali aparece, sentado ao centro com a bola nas suas mãos, indicador do seu estatuto de capitão de equipa.

Pedro Guedes fazia parte de um grupo de jogadores notáveis, pioneiros do futebol em Portugal. A sua acção e exemplo foram inspiradores para muitos miúdos que se sentiram atraídos para esse jogo, até ali desdenhado quer pela ausência de prática desportiva generalizada no nosso país quer por ser visto como uma diversão de ingleses. Inicialmente nos dois campos ou melhor nos dois terrenos mais ou menos planos do Campo Pequeno (hoje são ocupados pela praça de touros) vieram a suceder os vastos terrenos da zona de Belém e em particular as Terras do Desembargador. Nesses espaços se juntaram as vontades e talentos de vários grupos com particular destaque para o grupo dos Catataus e um grupo de ex-Casapianos. Estes últimos (entre os quais se incluía Cosme Damião) eram de uma geração mais nova do que a equipa de Pedro Guedes. Os mais velhos eram pois vistos como jogadores prestigiados pelos seus feitos desportivos e pela sua personalidade. Afinal eles eram os vencedores de dois jogos contra os ingleses do Carcavellos, feito raríssimo e dificílimo e por isso ainda mais admirado e comentado.


Pedro Guedes, capitão de equipa com a bola nas mãos.

Sabe-se que Pedro Guedes jogou noutras posições de campo para além de guarda-redes. Assim talvez o seu recuo para a baliza se tenha devido à veterania.

O que é certo é que foi o primeiro guarda-redes da história do Sport Lisboa e Benfica. Guardião da baliza vermelha na estreia absoluta do nosso clube. Ao meio dia do dia 1 de Janeiro de 1905, nas terras do Desembargador, às Salésias, o Grupo Sport Lisboa vence por 1-0 o Grupo do Campo de Ourique. O golo esse foi marcado por Silvestre da Silva, outro professor e grande figura casapiana. O Grupo do Campo de Ourique era um dos mais prestigiados senão mesmo o mais prestigiado dos clubes com jogadores Portugueses. Curiosamente na baliza do Campo de Ourique estava Manuel Mora, outro pintor de renome e que viria a ser o nosso segundo guarda redes. Os grandes atraem os grandes.

http://em-defesa-do-benfica.blogspot.pt/2015/01/um-minuto-de-silencio.html


Como relata Alberto Miguéns, esta escolha de antigos casapianos tais como Pedro Guedes, Silvestre da Silva, António do Couto e Emílio de Carvalho não foi feita ao acaso. Para além dos miúdos de Belém a equipa foi desde logo doseada com experiência e talento de quem já tinha uma década de futeboladas em cima. A escolha teve pois virtudes e efeitos imediatos no aumento da capacidade competitiva e nos conhecimento técnicos de jogo (relembre-se que Gourlade tinha encomendado uns meses antes as regras do jogo directamente a Inglaterra). Depois claro havia o elemento de prestígio pelos motivos acima referidos. O resultado foi uma vitória logo no primeiro jogo. Moldava-se desde cedo a raça Benfiquista.

A segunda fotografia já se reporta à faceta de artista, professor, homem das artes. Pedro Guedes foi um artista reputado, um homem da cultura e uma figura de prestígio e autoridade na Casa Pia. Aquela geração conhecida por geração Margiochi tinha outras figuras de grande relevância nas artes tais como os escultores Francisco dos Santos e José Netto, o arquitecto António do Couto, o professor Silvestre da Silva, o cinzelador Emílio de Carvalho, o médico Januário Barreto e o coronel Bruno do Carmo. Estão todos nesta fotografia. Apenas os dois últimos nunca terão jogado com a camisola vermelha embora Januário Barreto tenha sido o primeiro presidente eleito do Sport Lisboa. Esses dois homens foram segundo a tradição os homens aqueles que terão introduzido o jogo na Casa Pia. Para isso receberam a aprovação de Francisco Simões Margiochi, provedor da instituição à época e que inclusivamente veio encomendar uma bola de Inglaterra.

Ora e a este propósito, na fotografia lá em cima note-se que a bola que Pedro Guedes tem nas mãos ostenta as iniciais GCP, facto que pode ser interpretadas de duas formas. a primeira que já ouvi é que seria Ginásio Clube Português, um grupo prestigiado onde jogaram os Pinto Basto, introdutores do futebol em Portugal. Assim sendo a fotografia reportar-se-ia a um dia de jogo disputado contra esse grupo. A outra hipótese seria tão somente Grupo Casa Pia. E assim sendo então porque não admitir que se tratava da famosa bola encomendada por Francisco Simões Margiochi?


Francisco Simões Margiochi
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sim%C3%B5es_Margiochi
Fonte: AML

Outros homens, embora não pertencendo a essa elite culta foram seus companheiros de futeboladas e verdadeiras formiguinhas na implantação do futebol em Portugal. Alguns deles foram-no no Benfica como por exemplo João Carvalho Persónio e David da Fonseca entre outros.

Mas voltando a Pedro Guedes, por ser já veterano (à época 30 anos era já considerada uma idade veterana) aquele acabou por ser o único jogo que veio a fazer pelas nossas cores. É possível que não tenha voltado a joga futebol. As prioridades de vida nessa altura foram certamente ditadas pelas condicionantes da idade e pelas obrigações profissionais. Mas a história regista que foi ele o primeiro dos guarda-redes gloriosos.

Depois viriam

  (2) Manuel Mora veio do Campo de Ourique, emigrou para o Brasil;
  (3) João Persónio, antigo casapiano;
  (4) Alfredo Machado, também foi jogador de campo;
  (5) Jorge Rosa Rodrigues, o mais novo dos Catataus;
  (6) Constantino da Encarnação, antes jogador de campo; viria a jogar no FCP;
  (7) João Matos, veio do Cruz Negra;
  (8) Mário Monteiro, também foi jogador de campo;
  (9) Augusto Paiva Simões, depois jogou no SCP e voltou ao SLB;
(10) Cirillo Miramon, Português de ascendência Francesa;
(11) José Picoto, depois dirigente do Clube;
(12) Adolfo Stock, que depois emigrou para o BRasil;
(13) Carlos Guimarães, antigo casapiano, saiu para o CACP;
(14) Clemente Guerra, antigo casapiano, saiu para o CACP;
(15) Francisco Viera conhecido por Chiquinho.

Isto falando da primeira categoria.
Há pelo meio uns casos curiosos mas isso fica para outro dia.

Lorne Malvo

Fantástico trabalho que tens feito aqui, RedVC. Foi um prazer ler estas páginas e enriquecer o meu conhecimento do Benfica. Obrigado e continua!

RedVC

Muito obrigado Lorne Malvo  O0
Vou aprendendo e vou partilhando. Com tempo irão aparecendo mais umas coisas. À medida que houver disponibilidade para pesquisar e organizar. Gostava que fosse mais regular mas isto é mesmo um passatempo.

faneca_slb4ever


Jotenko


Eddie_

Penso que ainda não havia 2ª circular nessa altura.

Do lado direito deve ser a alameda linhas de torres

RedVC

#97
Sim, o Eddie_ tem razão.

Note-se que nem existe troço de estrada do que é hoje a saída da 2ª circular que passa ao lado do Colégio de Santa Doroteia.

Aqui fica a minha ideia do que está na fotografia.




Note-se o número 0. É mais ou menos por ali...


Goldberg

Este tópico é uma autêntica maravilha!Uma espécie de museu do clube aqui do fórum!Que lindas "viagens" ao nosso passado  :slb2: Parabéns pela ideia e obrigado pela dedicação!

fudim flan

Citação de: RedVC em 06 de Fevereiro de 2015, 21:04
Sim, o Eddie_ tem razão.

Note-se que nem existe troço de estrada do que é hoje a saída da 2ª circular que passa ao lado do Colégio de Santa Doroteia.

Aqui fica a minha ideia do que está na fotografia.




Note-se o número 0. É mais ou menos por ali...


Citação de: RedVC em 06 de Fevereiro de 2015, 21:04
Sim, o Eddie_ tem razão.

Note-se que nem existe troço de estrada do que é hoje a saída da 2ª circular que passa ao lado do Colégio de Santa Doroteia.

Aqui fica a minha ideia do que está na fotografia.




Note-se o número 0. É mais ou menos por ali...


0 8 é o museu da cidade,e o 7 ao lado é o novo edifício da nós.
o resto está tudo bem.
o sanatório,entao chamado d.carlos,fica ao fundo, a caminho da travessa do alqueidao.

RedVC

#100
Obrigado pelas correcções. Fui adicionando items a uma versão inicial e esqueci-me de actualizar os números. Aqui fica a versão corrigida.




fudim flan

Citação de: RedVC em 06 de Fevereiro de 2015, 21:39
Obrigado pelas correcções. Fui adicionando items a uma versão inicial e esqueci-me de actualizar os números. Aqui fica a versão corrigida.


assim está tudo certo.
abraço benfiquista.

RedVC

Não adianta muito mas está aqui outra mais ou menos da mesma época.
Vê-se o lago do Campo Grande e o final da Avenida do Brasil.


RedVC

#103
-32-
Glorioso por um dia.


César de Melo


Continuando a falar da primeira equipa do nosso clube, hoje acerca de outra presença curiosa. Curiosa não apenas porque inesperada mas também pela figura em causa. Um nome quase esquecido mas que no seu tempo foi uma figura importante: César Baptista Ferreira de Melo de seu nome completo. Nasceu em Moçamedes, Angola, no dia 3 de Julho de 1880. Ou seja tinha 24 anos aquando desse jogo mítico de 1 de Janeiro de 1905.

Segundo Alberto Miguéns (http://em-defesa-do-benfica.blogspot.pt/2015/01/um-minuto-de-silencio.html), César de Melo alinhou nesse jogo como centre half back. Nesse tempo e durante muitos anos o futebol praticava-se segundo a táctica 2-3-5 ou a táctica da pirâmide.


Neste modelo de jogo, a posição de centre half-back era da maior importância para a equipa. Tinha por obrigação ajudar a defesa e ao mesmo tempo distribuir jogo para os avançados sendo por isso geralmente atribuída ao jogador de maior prestígio.

Não surpreendentemente e tanto quanto é do meu conhecimento entre Janeiro de 1905 e Maio de 1907, sempre que esteve disponível, essa posição na nossa primeira categoria foi assumida por António do Couto, antigo casapiano e arquitecto. Couto era uma grande personalidade e um grande futebolista. Seria mais tarde co-autor da estátua do Marquês de Pombal. Uma estátua que recentemente esteve muito bem vestida de vermelho, coisa que voltará a acontecer dentro de poucos meses.

Depois de Maio de 1907 o lugar seria assumido por Cosme Damião. E assim foi até à sua retirada em 1916. Isso mostra bem a relevância do lugar.

Mas voltando ao jogo de Janeiro de 1905, assim se nota que nesse jogo António do Couto foi colocado mais sobre a esquerda. O lugar de centre half-back foi assim ocupado por César de Melo no único jogo em que envergou as nossas cores. Porquê razão ou porque razões? Afinal este homem não tinha aparentemente qualquer ligação com os 24 fundadores ou com o núcleo mais alargado (homens já perto da casa dos 30s) que se foi associando ao novo clube. Não sabemos e provavelmente nunca saberemos as respostas mas podemos imaginar.


Para mim existiram duas razões:
1) ganhar o jogo, aumentando a competitividade desportiva (capacidade atlética e táctica);
2) ganhar prestígio, incluindo na equipa nomes conhecidos e prestigiados no meio.

Ou seja ganhar já era o lema. Era importante ganhar o jogo mas também e rapidamente a atenção, respeito e admiração por parte pequena mas elitista comunidade desportiva desse tempo. Afinal o Sport Lisboa tinha menos de um ano de actividade. Os ingleses do Carcavellos eram quase imbatíveis e só aceitavam jogar com o melhor dos "teams" ditos Portugueses (coisa que por exemplo com o CIF estava longe de ser verdade...). Em Lisboa, depois do Carcavellos, os grupos mais prestigiados eram o CIF e o Campo de Ourique. E lá está, o Sport Lisboa para jogo de estreia batia o Campo de Ourique! O Sport Lisboa implantava-se de forma ambiciosa e - factor distintivo - com uma matriz Portuguesa. E seria assim até 1979...

Assim não se fez por menos com a inclusão de nomes já bem conhecidos no meio futebolístico tais como os antigos casapianos Pedro Guedes, Emílio de Carvalho, António do Couto e Silvestre da Silva. A estes acresceria César de Melo. Nada menos de cinco jogadores. Os restantes faziam parte dos jovens, alguns dos assíduos dos treinos nas terras do Desembargador.

Assim, e nesse tempo quem era César de Melo? De onde viria esse presuntivo prestígio? Que méritos teria para assumir tal posição na equipa?

A primeira pesquisa que fiz trouxe até a dificuldade de conseguir uma imagem que fosse. Parecia um nome obscuro. Gradualmente e nas fontes adequadas fui sabendo que afinal foi um lutador de grande prestígio no principio do século XX. Com fama de imbatível, era o campeão de pesos médios:


César de Melo é o segundo lutador a contar da esquerda.
Fonte: Tiro e Sport, 1907

Um pouco ao estilo da época atente-se aos exageros que dele alguém escreveu no prestigiado periódico Tiro e Sport:


Pelas suas vitórias sucessivas e prestígio, César de Melo esteve aliás para integrar a comitiva aos jogos Olímpicos de Estocolmo em 1912. Ou seja esteve para ser colega de Francisco Lázaro:


Para além de Lázaro a comitiva integrou os atletas Armando Cortesão e António Stromp, os lutadores Joaquim Vital e António Pereira e o esgrimista Fernando Correia. Esses seis homens estão retratados nessa fotografia no dia 26 de Julho ainda no Terreiro do Paço.

Ora, César de Melo apesar de inicialmente escalado acabou por não ir. Como se lê eme baixo, acabou por não ir. Como atleta não teria outra oportunidade.

A comitiva portuguesa debateu-se com a falta de meios financeiros para se deslocar até Estocolmo, uma vez que o Comité Olímpico português não atribuiu nenhum subsídio. Por força disso mesmo, tiveram de ser excluídos quatro atletas do grupo inicial de dez que estavam selecionados para os Jogos. Correia Leal e Matias de Carvalho, no atletismo, Sebastião Herédia, na esgrima, e César de Melo, na luta, foram os excluídos (fonte: http://www.infopedia.pt/$jogos-olimpicos-de-estocolmo-1912).

Era pois um atleta de prestígio, e com aptidão para a prática de outros desportos. Homem de grande força mas também ágil e flexível, qualidades essas que eram úteis para o futebol e também para outros desportos tais como por exemplo a esgrima. Podemos vê-lo aqui , de negro praticando esgrima com Fernando Correia, esgrimista de prestígio e chefe da comitiva Portuguesa a Estocolmo 1912:

Fonte: AML

César era médico de profissão, mas foi igualmente um pedagogo e sendo uma figura prestigiada do dirigismo desportivo Português foi gradualmente assumido cargos de responsabilidade no dirigismo Olímpico. Assim, nada mais lógico que já perto da conclusão da sua vida de dirigente desportivo, tenha sido nomeado para chefiar a comitiva aos jogos Olímpicos de Helsínquia de 1952. Com 72 anos, e 40 anos depois de Estocolmo 1912 foi a uma Olimpíada num país nórdico. Nessa Olimpíada a comitiva Portuguesa integrou 71 membros entre os quais e pela primeira vez duas atletas do sexo feminino. César de Melo participou já não participou como atleta mas como chefe de comitiva. Talvez não tenha sido esse o caso mas quase apetece dizer que o foi em jeito de compensação.


César de Melo é o membro sentado mais à direita.
Fonte: Digitarq


Ficha de César de Melo, chefe da comitiva Portuguesa a Helsínquia 1952.
Fonte: Arquivo do Comité Olímpico

Fica a memória, algo que é devido e importante para qualquer homem.


Reed