A ideia é simples: encontrar e tentar entrevistar todos os jogadores com golos a Portugal em Mundiais para trabalhos a ser publicados em Maio e Junho. O primeiro da lista é Ferenc Bene (3-1 à Hungria) mas o homem já não mora aqui desde 2006. Bom, adiante. Seguem-se os búlgaros mas José Pereira é uma barreira intransponível (3-0). Menos um. Venha de lá então o Brasil. Acaba 3-1 e o golo é de... Pelé? Não. Jairzinho? Também não. É de Rildo, o lateral-esquerdo. Está vivo, a viver nos EUA. Encontramos o seu email a 26 de Novembro via-site d eum jornalista desportivo brasileiro (Milton Neves) e enviamos-lhe as perguntas a 20 de Dezembro. Isso mesmo, prenda de Natal antecipada. Rildo não nos liga nenhuma.
Passa-se o Natal e o Ano Novo. Antes do dia dos Reis (3 de Janeiro), voltamos a enviar-lhe o email. Que merece resposta três horas depois: "Oi, estou no Brasil, na praia. Quando chegar a casa responderei às suas perguntas. Um grande abraco, RILDO."
Muito bem, habemus tempo. Domingo, dia 5 de Janeiro: a morte de Eusébio entristece o mundo. O volume noticioso é impressionante com 24.857 conteúdos novos sobre o avançado português em 48 horas. Rei é Rei, em Portugal (5293), Reino Unidos (1990), Espanha (1880), Alemanha (1377), Itália (1252), França (1019), Brasil (987), Moçambique (22) e até na China, onde até se abrem os noticiários televisivos.
Do Brasil, chega-nos outro email de Rildo: "Sr. Rui, lamentavelmente perdemos o grande Eusébio. Estou a viajar mas terei imenso prazer em responder-lhe neste momento delicado." Aqui (também) se vê a grandeza de Eusébio. Vamos a isso, vá. Rildo tem a palavra. Ou não, atende-nos uma senhora.
Boa tarde, queria falar com o Rildo, por favor.
Rildoooooooo
(...)
Alô?
Oi boa tarde, daqui é de Portugal.
Opa, tudo bem com você?
Tudo, e aí?
De férias, sempre bão. E o Eusébio, como está o país?
Três dias de luto nacional desde domingo.
Pois é, o Eusébio merece tudo isso e muito mais. Era gente boa demais. A gente contava-lhe anedota de português e ele contava-nos de brasileiros, com sotaque brasileiro. Era divertido demais. O que se nos ríamos.
Apanhou-o no Mundial-66...
Antes já tinha jogado com ele pelo Botafogo e depois pelo Santos, particulares né?, às vezes nos EUA.
E como era lidar com a fera?
Era completo: rematava muito bem com os dois pés, cabeceava lindamente, organizava, chutava, marcava cantos, lançamentos laterais, recuava, avançava. Um fenómeno. Era ele lá na frente com o altão do Torres mais o José Augusto a ponta direita e o Simões na esquerda. Não dá para esquecer essa selecção, boa demais. Devia ter sido campeã do mundo, mas os árbitros não protegiam o Eusébio. Aquela meia-final com a Inglaterra foi uma vergonha porque o cara lá bateu nele o tempo todo.
O Nobby Stiles?
Esse mesmo [quase grita aos nossos ouvidos], o Stiles, dava porrada para cacete. O Eusébio, coitado, sofreu.
Mas o Pelé também sofreu com Portugal, não?
Ahhh, está falando do Morais é? Foi uma falta dura. Uma não, duas. Muito duras, mas o Pelé já estava machucado. Aliás, ele não jogou com a Hungria para ser poupado e jogar com Portugal. As entradas do Morais obrigaram-no a parar por quatro meses. Quando voltou, num particular Santos-Benfica nos EUA em que ganhámos 4-0, o Pelé já era de novo o Rei, cheio de força e categoria. Digo mais: quando acabou o jogo com Portugal, o Pelé chorava, chorava e chorava, quando conseguiu falar, pediu-nos desculpas a todos por se apresentar naquela forma, meio-machucado, por não ter ajudado a equipa o suficiente.
E Eusébio, o que lhe disse?
Olha, eu chorei até cair para o lado. Ser eliminado na primeira fase é duro, ainda por cima a selecção bicampeã do mundo. Estava muito decepcionado. Aí, o Eusébio veio ter comigo, pediu-me a camisola e segredou-me que 'eram coisas do futebol' e 'que iríamos ser campeões do mundo na próxima edição'. E não é que fomos mesmo, em 1970? O Eusébio era bom coração demais. Fora e dentro do relvado. Sabe o que ele fez?
Nem ideia.
Enviou-me a camisola dele desse jogo para mim, por correio. Com uma carta bonita. São gestos que aquecem o coração da gente durante anos e anos.
Como foi o seu golo a Portugal?
Estávamos a perder 2-0, era preciso reagir. Fui lá para a frente, combinei com o Lima, aproximei-me da grande área e rematei cruzado. Saiu-me bem e a bola entrou no canto. Deu uma esperança mas o Eusébio dá aquele coice e adeus Brasil.
Nesse Mundial-66, Garrincha e Pelé fazem o último jogo juntos na selecção. Com a Bulgária, certo?
Certíssimo, eles nunca perderam a jogar juntos na selecção. Foi uma emoção enorme ter participado na história desses dois. Com o Garrincha, no Botafogo. Com o Pelé, no Santos. Com os dois, na selecção. Que honra.
Como era Garrincha?
Um homem bom, completamente desligado do dinheiro. Como eu era muito novo, eles lá do Botafogo fizeram-me garçon [empregado] quando saímos para os bares. Às tantas, virei pombo-correio do Garrincha quando ele namorava a famosa Elza Soares. Eu ia ter com ela com um recado dele e voltava com outro dela para ele. Era divertido, fazer o quê?
Se você era lateral-esquerdo e o Garrincha ponta direita, os treinos eram...
Pfffff, nem me fala. Só via o número 7 à minha frente. Quer dizer, às vezes, via-o à minha frente mas era só um pormenor de pouca duração. De repente, ele já estava à minha frente. Garrincha, o cara que decidiu a Copa-62 a nosso favor. Druiblador como ele, não houve. Nem Pelé nem nada.
Genial, não é?
Bota genial aí. De tanto marcar o Garrincha, só tive filhas. Foi medo de ter filho jogador e ver um cara com ele a entortá-lo.
Depois foi para o Santos?
O Carlos Alberto Torres disse-me que o Santos pagava o salário em dia, enquanto o Botafogo demorava três, quatro meses. Nessa fase, o Botafogo estava muito ruim e não queria vender-me. Depois de brigar muito, eles falaram: "Nós vendemos, mas você tem de abrir mão dos 15% (direito do jogador em caso de venda do passe)". Tive de abrir mão. Fui para o Santos, que me deu metade dos 15%, mais apartamento na praia e o salário .
Bons tempos, não?
Nem imagina. O Santos ganhou tudo: Paulista três vezes, Brasileiro seis, Libertadores duas, Intercontinental duas. Fora os torneios na Europa, como em França e Espanha, onde o Real Madrid não quis jogar com a gente, mas demos 5-1 ao Barcelona. O Real Madrid alegou que os seus jogadores estavam todos machucados. Não queria era jogar, fugiu de nós.
E aqueles jogos em África. A guerra parava mesmo?
Com certeza, pode crer que sim. Uma vez fomos jogar e os caras com canhões mais carros blindados no aeroporto. Mas o Santos parou a guerra, Pelé era mesmo rei, os caras ficavam loucos.
...
Depois voltei a jogar com o Pelé no Cosmos, em 1977. Encontrei-o de férias em França e perguntei-lhe 'Pô, você vai para o Cosmos de Nova Iorque e não me fala coisa nenhuma.' Então ele convidou-me. A única condição do Pelé era que eu tinha de fazer o passaporte com menos idade, eu na altura tinha 35 anos. "De velho já tem eu", disse o negão. Consegui um passaporte a dizer 29 anos. Nos EUA, foi brincadeira. Os caras só davam chutão prò ar e nós fomos jogar bola no chão. Bicampeões americanos: eu, Pelé, o craque alemão Beckenbauer e um português ponta direita que corria para burro Se-Se-
Seninho?
Isso mesmo, muito bom.
Obrigado Rildo e boa praia.
Para você e vivò Eusébio.