O que leva um tipo a quem iam amputando uma perna a regressar ao sítio onde os ossos se desfizeram, uma e outra vez, e testar os limites do seu corpo? Resposta: a busca pelo salto perfeito, que ele diz existir dentro dele e que ele encontrará mais dia menos dia. É a fé e a confiança que o movem e o levam a pular para lá do que é exigido a um campeão olímpico e mundial que não tem mais nada a provar a ninguém - a não ser a ele próprio. Este é um trabalho que publicámos em agosto de 2014, quando o saltador se preparava para os Europeus e falava das metas que tinha traçado para 2015 e 2016: mostrar que não estava acabado. Sete meses depois, provou-o no Europeu de pista coberta em Praga, onde venceu este fim de semana.
Estendo-lhe a mão e o homem vira-me as costas. -Espere lá um bocadinho, que primeiro estão as senhoras. Elas quatro riem-se, eles dois também; e eu continuo estupidamente de mão estendida, a tentar disfarçar o embaraço. - Agora sim. João Ganço, prazer. - Pedro, prazer. Elas riem-se, eles riem-se, eu rio-me. Há várias formas de quebrar o gelo e acabo de descobrir que a vergonha alheia é uma delas. Agora, estão todos apresentados e cada um sabe ao que o outro vai: o Pedro e a Joana, do Expresso, foram recebidos no Algarve pela Sónia e pela Helena, da Adidas, que marcaram a entrevista com o atleta Nelson Évora e o treinador João Ganço; e a Susana Costa, também ela saltadora, é um bónus para a reportagem. Os dois primeiros acompanham os três últimos nesta história que começa com a falta de cavalheirismo de um jornalista, continua aos saltos (três de uma vez) de atletas e acaba no chão com dois dedos de conversa com um campeão mundial e olímpico.O treino: o melhor doping é a motivação Nelson Évora escolheu treinar neste Algarve que fica junto à praia da Falésia, perto dos serviços de Albufeira mas suficientemente longe das suas peculiaridades. Quer paz e sossego. Quer caminhar. Quer desligar o telemóvel. Quer rir-se e concentrar-se nas coisas boas da vida e esquecer as más. Fá-lo com relativa facilidade, diz ele, e fá-lo também por necessidade, dizemos nós. A duas semanas dos Europeus de atletismo, Nelson já expiou o medo que as lesões lhe foram plantando na cabeça e amanhã, quando estiver a saltar, dará o primeiro passo para "completar o ciclo". Completar o círculo soa melhor. O ouro europeu é a medalha que lhe falta e falta-lhe também provar aos que o enterraram quando a tíbia e o perónio estilhaçaram. Na mente dele estão o Mundial de 2015 e os Jogos Olímpicos de 2016. O tal "completar do ciclo." Hoje, Nelson fez o seu 90º treino de saltos do ano e pelas suas contas já tem milhares de pulos desde que esta época começou. É por isso que garante estar bem e recomendável, pronto para regressar "à elite" e competir com os atletas que, agora, vão desejar-lhe o mal e não o bem [mais tarde, explicar-nos-á que o triplo salto é um desporto violento e barulhento, em que homens feitos se agridem longe dos olhos de quem os vê]. Nelson está habituado à dor e trata-a pelo nome dos sítios onde ela lhe vai aparecendo: "Nos músculos e nos tendões amassados e gastos". São 23 anos a fazer isto, diariamente, mas de cada vez que o faz descobre alguma coisa diferente. Ou melhor, alguém por ele descobre alguma coisa diferente: João Ganço. O treinador: relação pai e filho Nelson Évora nasceu filho de cabo-verdianos na Costa do Marfim em 1984 e chegou a Portugal com cinco anos. Não falava a língua mas brincava em português e com portugueses em Odivelas, na rua onde ainda hoje fica a casa dos seus pais. Tinha muitos amigos e David era o favorito por uma questão de proximidade, porque era seu vizinho, e de afinidade, porque também adorava desporto. Jogavam à bola e à apanhada e às escondidas, mas do que o Nelson mais gostava era o jogo da mosca. Havia ali qualquer coisa que mexia com ele - a competição, a liberdade, o um-contra-um. E os três saltos. As tropelias - Nelson foi um miúdo reguila - eram acompanhadas pelo João, o "senhor João Ganço", pai do David e antigo saltador em altura. O "senhor João" passou a "setôr João" quando o Nelson começou a ser treinado por ele; hoje é o "professor João", um técnico que é mentor, que é amigo e que é confidente. Um com o outro, partilham quartos de hotel, histórias, piadas, sucessos e sofrimento. Se o "professor" está bem, ele também está; se o "professor" está mal, ele não está bem. Estão juntos há 23 anos. A competição: quando me provocam, é o fim deles A competição deixa os saltadores isolados. Os treinadores estão nas bancadas e só lhes dão conselhos entre saltos; eles estão entregues aos seus demónios. A tensão é enorme porque o jogo começa logo ali: os atletas respondem a uma primeira e a uma segunda chamadas de presença, são revistados e entram num lugar onde tudo é permitido.Aquilo que julgava saber sobre o atletismo caiu na caixa de areia. Não é um sítio simpático, limpo, assético, silencioso. Nelson fala-me de agressões físicas e verbais, provocações a torto e a direito; bluff, encenações, caras de póquer. Cada um reage como quer e Nelson prefere estar do lado do provocado do que do provocador. Alimenta-se da raiva e controla-a como a um animal selvagem, soltando-a quando começa a correr pista fora - o ouro olímpico de 2008 deve-o a um rival que se sentou à frente dele ("por norma, evitamos o contacto visual") para lhe moer o juízo. - Quando me provocam, é o fim deles. Mas Nelson não é um santo. Foi enganado mas também já enganou, como aquela vez, em 2009, quando já estava gravemente lesionado e se fez de forte e de convencido para derrotar um cubano em melhor forma. Aconteceu assim: Nelson, campeão olímpico e vice-campeão do mundo, tinha já uma fratura de stress na perna quando competiu num meeting da Golden League em 2009. O cubano, confiante, chegou-se ao pé do português e disse-lhe: - Eu estou a sentir-me espetacularmente bem! Hoje não tens hipótese. - É bom que estejas. É mais uma motivação para te ganhar. O cubano saltou antes dele, fez 17,37m e quando saiu da caixa levantou o indicador, como quem diz sou o número 1. Nelson roía-se com as dores e pensou que o melhor era arrepiar caminho porque o cubano iria "trepar por ali acima" na classificação se não fosse posto em sentido. Saltou 17,39m, fez cara de poucos amigos, como se não estivesse descontente com a marca, e fingiu discutir o assunto com João Ganço. Voltou atrás e reencontrou o cubano. - Vês? Eu disse-te que estou muito forte hoje. - Olha, Nelson, vamos combinar uma coisa: não vou saltar mais e não vou atacar o primeiro lugar. Ok? - Está bem, tranquilo. Nelson fez bluff e ganhou. A lesão: podiam ter-me amputado a perna A lesão era real e manifestou-se da forma mais estúpida. Nelson julgava ter acabado o treino, pôs a mochila às costas e enquanto fazia contas veio-lhe um número à cabeça: faltava-lhe um último salto. Voltou atrás, pousou o saco e quando virava costas à caixa de areia para se preparar para a corrida, algo nele cedeu. - Não desejo a dor que tive ao pior dos meus inimigos. A tíbia fraturou. Foi operado mais do que uma vez porque a lesão provocou uma segunda e outras a seguir, até na perna esquerda, porque o corpo encontra caminhos proibidos quando quer compensar insuficiências. Podia ter sido pior. E ele ri-se. - Parti a perna em duas partes, tenho um calo ósseo no perónio e na tíbia do tamanho de uma moeda de dois euros. Podiam ter-me amputado a perna. A culpa daquela lesão é sua. Da sua teimosia e de não estar à escuta para ouvir o que o físico lhe dizia. Não parou quando devia porque queria atingir a perfeição técnica do triplo salto. Nelson sentiu-a ali, à mão, à espera de ser agarrada, mas acabou agarrado à perna durante anos até poder retomar as "sensações" de antes. Hoje teria parado, mas não lamenta o que aconteceu porque aquilo tinha de acontecer. O destino estava traçado desde que começou a pôr pedras no chão e a saltar por cima delas naquela rua de Odivelas.O homem privado: Quero deixar um exemplo Nelson pratica a Fé Bahaí'i por influência de João Ganço e é um rapaz de boa-fé apesar dos defeitos que ele confessa ter. Um deles é ser muito complicado, seja lá o que isso for, mas parece querer dizer que cresceu com as "muitas desilusões pessoais" que foi tendo. Não sabemos se é de amor que ele fala mas também não lhe perguntámos. - Temos de saber se a pessoa nos respeita, se tem os valores que se adequam nos nossos. Às vezes, as pessoas focam-se muito num pormenor - ou porque é baixinha ou porque fala muito, mas se fala muito até pode ser divertida, não é? O que ele quer deixar aos seus é aquilo que chama de "exemplo". Porque o exemplo é o legado; a casa, o dinheiro, o carro são apenas coisas e as coisas perdem-se. Porque o exemplo é como o contorno do corpo que fica na caixa de areia depois do salto - como basta uma vassoura para a marca desaparecer, é preciso pular outra vez para ninguém se esquecer dela. Ou tentar melhorá-la.