João Pinto vs Paulinho Santos: memórias de um ódio de estimação

Fonte
ionline

Por Rui Miguel Tovar, jornal I

É uma história de encantar. Para o lado negro da Força, claro. Os dois colidem uma, duas, três, mil vezes até se unirem num abraço em Junho de 2003, antes de um Porto-Sporting

Idade Moderna, mil quatro e troca o passo. O imperador Cláudio II proíbe o casamento durante as guerras por acreditar que os solteiros são melhores combatentes. O bispo Valentim é do contra e continua a celebrar casamentos. Quando se descobre a marosca, Valentim é preso e condenado à morte. Entre um acto e outro, não só recebe muitas flores e bilhetes de amor de jovens admiradores como se apaixona pela filha cega de um carcereiro - milagrosamente, devolve-lhe a visão. Antes da execução, no dia 14 de Fevereiro, Valentim escreve uma mensagem de adeus e assina "De seu Valentim".

Idade Contemporânea, mil nove e qualquer coisa. O futebol toma conta da sociedade. Os estádios enchem-se de pessoas, as pessoas enchem-se de esperança, a esperança enche-se de futebol. É um carrossel engraçado, entretido até. Ai não é? Então faça lá o exercício de 22 homens atrás de uma bola... Já está? Entretido, hein! Pois, agora retire 20 desses jogadores da equação e escolha dois para fazer um par. Que não romântico, tudo menos isso.

Tchan tchan tchaaaaaaaan, eis Jorge Costa e Weah (FC Porto-Milan em Novembro de 1996, para a Liga dos Campeões). Ou Morais e Pelé (Portugal-Brasil em Julho de 1966, para o Mundial). Ou José Soares e Jardel (Campomaiorense-FC Porto em Fevereiro-2000, para o campeonato). Isto não está a resultar, vamos ver se é agora. Tchan tchan tchaaaaaaaaaan, eis Paulinho Santos e João Vieira Pinto. Ahhhhh bom, agora sim, habemus par.

Os dois embrulham-se vezes sem conta nos clássicos FCP-SLB, mas só vão juntos para a rua numa única ocasião, nas Antas, a 3 de Janeiro de 1998, numa vitória portista com bis de Artur. O árbitro é o setubalense António Costa, autor de uma exibição circense com a anulação de um golo limpo ao estreante Kandaurov (seria o 1-1). Ligeiramente depois, Paulinho Santos e João Vieira Pinto vêem o vermelho directo. É um momento histórico. E maldoso. O portista dá-lhe uma cotovelada (só captada pelas câmaras da TVI quando o jogo é transmitido pela RTP) e o benfiquista responde à letra. Pronto, está o caldo entornado.

Encharcado de paninhos quentes, o Conselho de Justiça dá dois jogos de suspensão a cada. Há uma revolução no ar e o CJ impede Paulinho de jogar enquanto JVP está de molho. De maxilar partido, o capitão do Benfica passa um mês a alimentar-se só de líquidos. Alguém tem a coragem de lhe perguntar se perdoa a Paulinho Santos, ao que JVP responde visivelmente transtornado:

"Outa bez?"

Informamos os mais desatentos: estamos em mil nove e noventa e oito. Quatro anos antes, em Agosto de 1994, saltam as primeiras faíscas entre eles, por ocasião da 1.a mão da Supertaça portuguesa, na Luz. O portista marca o benfiquista em cima, nem o deixa respirar. Às tantas, cabuuuummm, rebenta a bolha. Paulinho faz falta e, pobre coitado, embrulha-se com JVP. Parece uma taluda, andam à roda. Um cotovelo aqui, uma mão ali e negócio fechado. JVP, de cabeça quente, atira-se ao 6. Carlos Calheiro mostra-lhe o vermelho directo e é o quinto expulso dessa noite, depois de Secretário (19', vermelho directo), Abel Xavier (35', duplo amarelo), Rui Filipe e Nelo, ambos vermelho directo, aos 81'. E em golos, qué bom? Um e um, por Rui Filipe e Vítor Paneira. Começa aqui o desamor entre Paulinho e João.

O segundo capítulo passa-se a 6 de Outubro de 1994, durante o estágio para o Letónia-Portugal, de apuramento para o Euro-96. É o segundo jogo de António Oliveira como seleccionador nacional - na estreia, 2-1 em Belfast. Na capital norte-irlandesa, JVP não conta para o totobola. Por lesão.

Na convocatória para a operação Riga, os dois da airada encontram-se e Oliveira quer fazer as pazes à força. "À semelhança da última convocatória, não há caso nenhum nem há nada que não nos leve a pensar que o espírito saudável não venha a manter-se." Mais à frente, "é do domínio público que os dois jogadores tiveram um pequeno problema profissional mas eles têm que compreender que são elementos importantes para a operação Letónia e que a selecção não é nem o Benfica nem o FC Porto."

E qual é o plano de Oliveira? Junta-os no mesmo quarto. Isso nem sequer é um problema para Paulinho Santos, já João Vieira Pinto... O menino d'ouro chega à concentração, fala com o seleccionador e alega "falta de respeito". Do outro lado a resposta é dura. "Já ganhámos em Belfast sem ti. Se quiseres fazer parte do grupo, aceitas o meu pedido. Conversem, discutam, mas façam as pazes. Se não quiseres, podes ir-te embora mas ficas a saber que nunca mais cá voltas e que vamos apurar-nos na mesma." Vamos a jogo? Siiiiiiiiim.

À falta de Couto (suspenso pela FIFA), Paulo Sousa (sem ritmo), Domingos (desinspirado) e Paneira (longe das exibições ao serviço do Benfica), o talento individual de João Vieira Pinto garante a vitória por 3-1 com um bis. Portugal está a caminho do Inglaterra-96 e leva Paulinho mais João na bagagem. A fase de grupos é peanuts e só caímos nos quartos-de-final com aquele chapéu de aba larga do checo Poborsky.

A vida continua. Ainda Idade Moderna, mil nove e tal, o Porto joga em Trondheim (Noruega) para a Liga dos Campeões. Paulinho é o único de manga curta. É também ele quem se assume como marcador oficial dos penáltis do FCP. Estamos na era Bobby Robson e o treinador inglês faz dele um defesa-esquerdo de categoria internacional, ao ponto de uma noite, em Génova, ter metido no bolso o italiano Lombardo (Sampdoria). Claro que há sempre um senão. Diz Robson: "Tem de se estar sempre em cima dele para não cometer asneiras daquelas desnecessárias, aquelas faltas duríssimas. Quando as faz no treino - e fá-las -, eu grito sempre: Stupid! Stupid, Paulinho."

Em 11 anos de Porto, o homem marca oito golos em 316 jogos e levanta 17 títulos, incluindo uma Taça UEFA, sete campeonatos nacionais, cinco Taças de Portugal e quatro Supertaças Nacionais. Pelo meio, 30 internacionalizações, dois golos e um penálti falhado. A despedida acontece numa tarde quente de Junho-2003, antes do clássico com o Sporting, no Dragão. No meio-campo, Paulinho recebe um abraço mais uma camisola de JVP. É ou não é amoroso? J