José Boto, scout do Benfica para a Europa, em conferência: scouting profissional em clubes de excelência

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As dezenas de pessoas que encheram o auditório Agostinho da Silva, na Universidade Lusófona, na tarde desta segunda-feira, ainda mal se tinham sentado quando começaram logo a perceber o que é isso de ser scout (no tempo do Gabriel Alves dizia-se "olheiro"), mesmo antes dos convidados começarem a falar. É que um dos nomes anunciados para o seminário "Scouting profissional em clubes de excelência", Gilles Grimandi, do Arsenal, não pôde estar presente.

 

"Esta coisa do scouting tem isto mesmo, num dia tens um plano, no outro estás a viajar inesperadamente para um país qualquer", explicou aos presentes - a maioria alunos do mestrado em futebol da Lusófona, mas também estavam lá os treinadores José Couceiro, ex-Estoril, Renato Paiva, dos juvenis do Benfica, e Hugo Oliveira, treinador de guarda-redes da equipa principal da Luz - a professora Helena Costa, que moderou o debate, juntamente com o jornalista Rui Miguel Mendonça.

 

Coube a José Boto, scout do Benfica para a Europa, e Laurent Busser, chief scout (que é como quem diz o líder da equipa de scouts) do Bayer Leverkusen, explicar o que fazem no dia a dia. "A nossa filosofia, no Leverkusen, é procurar jovens que possamos potenciar no futuro. Não somos o Bayern de Munique ou o PSG, que podem pagar 25 milhões de euros por um jogador", revelou Laurent Busser, que lidera a prospeção do clube alemão há dois anos, depois de ter estado no Hoffenheim.

 

"Para mim é mais interessante trabalhar num clube assim, porque ver que o Ibrahimovic é bom qualquer um vê", explicou, acrescentando que é preciso ter em conta muitos factores sobre um jogador, incluindo o psicológico (daí que até se façam visitas à família e a ex-treinadores). "Se for como o vosso Cristiano Ronaldo, um trabalhador incansável que quer ganhar sempre... É a diferença entre um jogador top e um normal".

 

No Benfica, a perspetiva é semelhante. "Queremos jogadores que sejam competitivos na nossa liga e possam crescer para depois serem vendidos", diz José Boto, que é scout há oito anos, depois de ter sido treinador. "Somos concorrentes do Leverkusen, mas eles com mais orçamento do que nós", gracejou Boto, que faz parte de uma equipa de quatro pessoas dedicadas ao scouting na Luz. No Leverkusen, são dez. "Em França e na Alemanha, na 1ª e 2ª ligas, quase todos os clubes têm quatro ou cinco pessoas dedicadas ao scouting", diz Boto.

 

Busser confirma, mas elogia, ainda assim, a qualidade do que se faz em Portugal. "Para nós, o Benfica e o FC Porto são um exemplo. Fazem um grande trabalho a descobrir jogadores desconhecidos e a valorizá-los". A reverência é tal que quando o Benfica perguntou aos alemães pelo preço de um puto que andava emprestado numa divisão secundária, em 2013, o Leverkusen pensou duas vezes sobre o futuro daquele jogador. "Se o Benfica o queria, é porque ele tinha qualquer coisa que não estávamos a ver", confessou Busser. A solução foi renovar com o jogador e emprestá-lo a um clube da Bundesliga, para ver se crescia. Hoje, Christoph Kramer (aquele que bateu com a cabeça na final do Mundial-2014) é titular do Leverkusen.

 

O problema é que está cada vez mais difícil arranjar jovens de qualidade dispostos a vir para Portugal. "Por exemplo, na ex-Jugoslávia, que é um mercado que conheço bem, é perfeitamente natural haver jogadores de 16 e 17 anos na 1ª liga. Isto cria-nos um problema porque já estão num patamar que não é adequado para as nossas equipas jovens, mas para entrar diretamente na nossa I Liga também não estão preparados", explica Boto, antes de apontar um exemplo que é capaz de deixar os benfiquistas a salivar. "Vi o Hazard a estrear-se no Lille, aos 16 anos, mas um miúdo de 16 anos que já valia alguns milhões não podia jogar no Benfica".

 

Busser diz que o problema é delicado, porque "dar cinco milhões de euros por alguém tão jovem é sempre um risco", pelo que têm de arranjar outras soluções. "Há quatro anos, encontrámos o Carvajal no Castilla [equipa secundária do Real Madrid]. Vimos 15 jogos dele - o processo é sempre moroso - e concluímos que tinha um bom perfil para nós e não ia jogar com o Mourinho [então treinador do Real]. Pedimos o empréstimo e o Real aceitou, com uma cláusula de recompra. A verdade é que ele jogou tão bem connosco que o Real acionou a cláusula na época seguinte", conta.

 

Às vezes, o mais importante é mesmo ver primeiro do que os outros, explica Busser. Foi o caso com o brasileiro Wendell, hoje lateral do Bayer Leverkusen. "Mandaram-me ao Brasil ver o Alex Telles, do Grémio. Não achei que tivesse o perfil indicado para nós, mas perguntei por que razão queriam vender. Responderam-me que tinham um outro puto pronto para entrar na equipa. Quando vi esse outro puto a jogar, percebi logo que era top. Era o Wendell", conta Busser. Boto sorri: "Quando o Wendell foi ao torneio de Toulon com o Brasil, foi uma excitação pelo miúdo. Mas na altura lembro-me que o Laurent estava ao meu lado e disse-me logo: 'Escusas de escrever um relatório porque este já é nosso'".

 

Mas as observações in loco nem sempre correm assim tão bem, conta o francês Busser num inglês respeitável - o mesmo que lhe permitiu arranjar o primeiro trabalho numa agência de jogadores, porque para ser scout convém ser poliglota (Busser fala francês, inglês, alemão e está a aprender espanhol, e Boto fala português, inglês, francês e arranha o alemão). "Imagina fazeres 10 mil quilómetros só para veres um jogador e ele aos cinco minutos leva um vermelho [risos]". Boto conta uma história semelhante: "Viajei para Paris, aluguei um carro e fiz 300 quilómetros para ir ver um jogador, isto com graus negativos e neve à mistura. Cheguei lá e não via o jogador, apesar de estar na ficha de jogo. Porquê? Lesionou-se no aquecimento".

 

É por isso que Boto diz que, para ser scout, é preciso muita determinação. "Diz-se que é como jogar ao 'Football Manager' na vida real [risos]. Mas as pessoas não sabem das horas nos aeroportos, nos carros, nos hotéis... É preciso ter muita capacidade de adaptação. E a experiência conta muito, tal como a observação, o entendimento do jogo e a intuição".

 

E quando um jogador é contratado... e não rende? "Eu choro", responde Busser ao Expresso, entre gargalhadas. "O nosso trabalho também é evitar as más contratações, porque se compramos alguém por cinco milhões de euros e ele não joga, os custos são altos", acrescenta. "Acho que não há culpados, nem scouts nem treinadores. Acontece em todo o lado, porque são muitas variáveis em ação", diz Boto.

 

Busser acrescenta que faz uma reflexão pessoal. "Tento perceber quais as principais razões para não ter funcionado. Mas não podemos acertar em tudo. Por exemplo, vi o Dante no Lille e achei que não era nada de especial. Nunca pensei que fosse ser campeão europeu com o Bayern de Munique", confessa.

 

"É o futebol", conclui Boto. "Claro que pagarem-te para veres futebol é sempre bom, mas levamos na cabeça se falhamos. Ser scout é uma profissão muito solitária. Muitas vezes lutas e lutas para que contratem um jogador e depois, quando ele passa por ti no corredor, nem sabe quem és. Nem tem de saber."

 

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