Ruben Amorim - voluntário no apoio a sem-abrigo de Lisboa

Fonte
Record

Primeiro a recusa. Um assunto demasiado delicado, que podia levar as pessoas a pensarem num aproveitamento de imagem.Depois, a vontade de viver, aos 28 anos, esta experiência, de ajudar, de esquecer por algumas horas o futebol.Foi assim que Ruben Amorim reagiu ao convite para, juntamente com os jornalistas de Record, e com o consentimento do Benfica, ser voluntário por uma noite na Comunidade Vida e Paz. Encheu o coração e foi esvaziando a alma ao ser confrontado com a realidade daqueles que não têm casa ou comida.

Primeira paragem, Sete Rios. Anatol, moldavo, há 13 anos em Lisboa, desconfia ao ver a câmara do Daniel Comédias e a máquina fotográfica do Paulo Calado. Uma palavra aqui, outra ali, sorrisos e descontração.Acaba a tentar a sorte. “Dá-me 200 euros, tenho 22 filhos”, disse, causando risos a todos. “Tem juízo”, advertiu Ana Grosso, de 54 anos, voluntária há três. Uma parte da equipa que, naquela noite, se completou com Rui Silva e António Silva, o coordenador. “Nem todos os sem-abrigo são assim”, de trato fácil, admitiu Ana Grosso.

Desaparecidos

Uns não querem comida e dizem-no rudemente, zangados com a vida. Outros simplesmente não querem aparecer. “A minha família nem sabe que aqui estou”, diz-nos um sem-abrigo, enquanto tenta lavar as mãos com fruta. Outros há que baixam o olhar e educadamente pedem apenas leite. Têm casa, mas estão sem comida.

Sempre pronto a ajudar, participativo, Amorim mostra uma invulgar capacidade de encaixe quando um casal lhe diz que não quer a comida, mas que deixe o saco (de papel) para “mortalhas”. Lidou de frente com os problemas, sentiu apertos no coração, mas aguentou firme.A noite acabou tarde. Ou não. Porque quatro horas talvez tenham sido poucas para estender as mãos a quem tanto precisa. “Foi gratificante”. Ruben voltou a encher o coração. Não de golos, boas exibições ou títulos. Foi de esperança. “Vou explicar-lhe como foi a noite, o que senti. Mas é difícil transmitir tudo o que vivemos”, desabafou, antecipando o que iria contar à mulher, Maria João, quando chegasse a casa.


O corrupio de pessoas ávidas por beber um copo e dançar pela noite dentro contrasta com a realidade, duríssima, que ali se vive a poucos metros. Perto – demasiado, talvez – doUrban Beach, um dos espaços mais em voga da capital, vivem pessoas em condições de extrema dificuldade. É naquele local que as tendas se acumulam, ao lado de sacos de lixo, e de “casas” feitas com papelão. Para quem tem tão pouco, qualquer espaço serve para construir uma “casa”,onde existe um cabide ou até um escorredor de louça. Vivemos aqui o momento mais pesado desta volta D.

É o “barracão”, edifício que chegou a acolher os sem-abrigo, mas que agora os deixa do lado de fora. Foi ali que Ruben Amorim cumpriu todas as regras, aprendidas em poucos minutos. A aproximação é feita de forma suave e com um “boa-noite” em voz tranquila. Nunca se força o diálogo e jamais se acorda quem está a dormir. Não era o caso de Galiana, uma ucraniana que pediu um reforço de leite.

Está escuro. Ana não quer avançar sem as luzes da carrinha acesas. “Já estive em situações limite, de me apontarem uma faca”. Não ali, mas em Santa Apolónia, quando, numa “vaga de frio”, tentou levar um sem-abrigo para fora da rua. “Tudo acabou em bem. Mas o perigo existe”. Só não supera a bondade. É assim que pensa Anabela Amorim, mãe do médio.Também quer ser voluntária. “É difícil dizer-lhe para vir. É bom ajudar, mas uma pessoa anda com o coração nas mãos”, diz o jogador.

Consoada com 2.500 jantares

Hoje, noite da Consoada, a Comunidade Vida e Paz tem prevista a entrega de 2.436 refeições às pessoas sem-abrigo. A Comunidade teve a sua festa de Natal no último fim de semana, na cantina 1 da Cidade Universitária, e durante três dias (20, 21 e 22) prestou apoio a quem vive na rua. Para a festa inscreveram-se 1.300 voluntários, que ajudaram na comida, mas também em questões médicas e burocráticas, como a legalização de documentos.


O relógio já passava da meia-noite quando a volta D acabou. Para trás ficavam quatro horas intensas, devidamente resumidas no relatório da Comunidade. Eram 21 horas, 30 minutos depois do arranque desta noite, quando o médio foi reconhecido. “Olha, olha... oRuben Amorim”, ouviu-se na Meia Laranja, coração do Casal Ventoso, no início de uma volta que nem foi das piores.

“Ao fim de semana é mais duro, porque há mais gente na rua e, na zona do rio, há muitos jovens a beber e a cruzarem-se com os sem-abrigo. Nesses dias terminamos entre as 3 e as 4 da madrugada”, explicou Ana Grosso.

Autógrafo... e o FC Porto

“É a primeira vez que fazes isto? E estás a gostar?”, perguntou Bruno, momentos depois de reconhecer o médio. “Amorim? Sou parecido”, respondeu o jogador. Tentativa frustrada. Bruno não permitiu imagens, mas pediu autógrafo. Ele que é adepto... do FC Porto. Futebol, diga-se, foi assunto raro nesta noite. “Agora está na altura do Sporting”, disse António, o coordenador da ronda. “Mal por mal, o Belenenses”, respondeu Bruno, que até apadrinha a chegada de Quaresma ao FC Porto. “Boa contratação. Apesar de ser velho”. Uma única resposta de Amorim. “Campeão? O FC Porto? Não vai ser, Bruno, tenho muita pena...”

A promessa de António Costa

A promessa está feita e o espaço até existe. Só falta que António Costa, edil de Lisboa, a concretize. Será a zona do Cais do Sodré que vai receber a casa dos sem-abrigo, onde vão concentrar-se vários serviços, como um centro médico e um gabinete de legalização de cidadãos. A casa, onde haverá espaço para banhos e entrega de roupa, permitirá o trabalho conjunto de todas as instituições, como a Comunidade Vida e Paz, a Casa, ou o Exército de Salvação Nacional, entre outras. “É preciso haver vontade política. A promessa do presidente da Câmara de Lisboa é ainda um projeto no papel”, afirmouAna Grosso.


A escuridão da noite camufla muita coisa, disfarça olhares e sorrisos, mas não esconde a solidão de quem dorme na rua. Sacos no chão, estendidos em alpendres e roupa a pedir reforma. Foi no “barracão”, atrás descrito, que Ruben Amorim sentiu os primeiros murros no estômago. O futebolista estava avisado pelos “companheiros de missão” que aquele seria o ponto crítico da volta, “a parte mais difícil”. De pouco serviu.

“Vemos a vida de forma diferente, mas não estamos preparados para isto”, desabafou um Ruben Amorim impotente para disfarçar a tristeza no olhar. “Há pessoas aqui em dificuldade extrema, a viverem sem qualquer tipo de condições. Também é verdade que existem pessoas que não reagem bem à ajuda. Também acontece... Achamos isso estranho, mas a verdade é que não sabemos a vida de cada um. Chegamos aqui e o choque é grande”, confessou, deixando ainda uma certeza, duas horas e meia depois do início desta missão: “Todos devíamos fazer isto uma vez na vida.”

Uma estrutura forte e “estofo”, “muito estofo”, são características que Ruben Amorim associa imediatamente a todos os voluntários que diariamente viajam por 100 pontos diferentes de Lisboa.“Não tem mal nenhum dizer que não se consegue fazer isto todas as semanas”, admitiu. Mas “pelo menos uma vez na vida” é quase obrigatório. Uma pequena ajuda para quem recebe tão pouco. “E para verque há pessoas que têm uma vida cheia de dificuldades. Nem são dificuldades, é muito mais do que isso.”

Quarta-feira, o dia em que Ruben Amorim fez a ronda pelos sem-abrigo, é tradicionalmente mais calmo, porque coincide com a existência de um jantar quente, em Alcântara, oferecido pela Câmara. Mesmo assim foram quatro horas de emoções e sentimentos “difíceis de explicar” em palavras. “Temos uma ideia do que se passa, mas só passamos a ter realmente noção dos problemas que as pessoas enfrentam diariamente ao vivermos uma noite como esta que passámos hoje”, expressou.

Miragem

Uma experiência que o jogador promete não esquecer, admite, com a voz a embargar: “São emoções complicadas de gerir. Vemos pessoas que vivem na rua como nós vivemos em casa. São coisas que damos como adquiridas e que certas pessoas não têm e para elas é um sonho”, frisou.

“Difícil de entender”, para o internacional português, é a existência de pessoas que estão na rua, mas recusam ajuda. Tanto como foi gratificante o diálogo que manteve com alguns sem-abrigo. “Foi bom”, respondeu, prometendo olhar para vida com outros olhos. “Estou a começar uma nova família, quero criar filhos e esta experiência também foi importante”, salientou. “Às vezes dizemos mal da vida, das lesões, das coisas que correm mal. Isto leva-me a relativizar muita coisa.”

Indiscutivelmente foi no “barracão”, num “cenário e momento mais difícil”, que mais murros sentiu no estômago. “Houve vários, sim”, exclamou, já no final da ronda, mas, mesmo assim, garantiu que repetia o desafio sem qualquer problema. “Claro, sem dúvida! Apesar de os meus companheiros de missão terem dito que foi uma noite levezinha, servimos cerca de 70 refeições. Não é fácil porque, como vimos, é preciso ter algum estofo”, confessou o jogador, pouco incomodado com o facto de ter abdicado de algumas horas do seu descanso nesta noite.

Voluntário fácil

Em período de final de recuperação de uma lesão que o afastou dos relvados, Ruben Amorim não virou a cara, por um momento que fosse, a quem lhe estendeu a mão na rua. “Boa-noite, Comunidade Vida e Paz”, foi a frase que usou para se aproximar de quem estava a tentar descansar, dentro das limitações de quem o faz no alcatrão.

Um voluntário que aprendeu depressa e conquistou os companheiros, com a sua disponibilidade. “Foi positivo”, expressou António Silva, quatro horas depois de ter cumprimentado Ruben Amorim pela primeira vez.

“Ele apanhou uma noite mais calma, mas penso que sentiu um pouco do que é estar na rua e do que é Lisboa à noite. Foi fácil conviver com ele e também foi fácil trabalhar com ele”, garantiu o responsável pelo circuito D, que permitiu a Ruben ter um novo olhar sobre quem não tem um teto para viver. Foi, como o próprio confessou, “uma lição de vida”. E para a vida! Toda.


Mais do que apenas alimentar o número crescente de pessoas que aparecem na rua, a Comunidade Vida e Paz debruça-se muito sobre o acolhimento de sem-abrigo. A maior vitória destes voluntários acontece nas raras vezes que conseguem fazer com que alguém troque o alcatrão por uma das quintas terapêuticas ou de reinserção. Parece fácil trocar a rua por uma casa, mas não é, especialmente em casos de alcoolismo e droga. “Não temos resultados tão positivos como queríamos”, confessou António Silva, coordenador da volta D. Golos permanentemente adiados.

“Não marcamos tantos como desejávamos. Mas tentamos todos os dias! Não é fácil tirar pessoas da rua, porque podem estar uns meses nas quintas, mas depois voltam e, regra geral, a situação piora”, explicou o responsável. Afinal, as regras são rígidas para quem chega aos espaços da Comunidade, não só em termos de convivência como de horários.

Quatro anos de voluntariado não são suficientes para aligeirar o que se encontra. Há tempo para descontrair, sobretudo entre os amigos da equipa, mas na rua todos os cuidados são poucos. “Custa um pouco andar à noite e ver o que vocês viram. Mas temos sempre força para vir e tentar tirá-los da rua”, disse AntónioSilva, de 58 anos, confirmando aquilo que Ruben Amorim e Record sentiram: há muitos sem-abrigo que precisam, acima de qualquer coisa, de um minuto de atenção. “Podemos ser nós os únicos contactos deles com a vida normal, chamemos-lhe assim. Porque de dia eles contactam uns com os outros. O nosso objetivo não é só alimentá-los, falamos com eles e ouvimos.”


Desistir é que não! Passam-se os anos, mas Ana Grosso sente “sempre” a mesma emoção e um sabor especial em cada caso que ajuda a mudar de vida.“É uma vitória muito nossa”, afirmou, revelando aquilo que a motiva. “É acreditar que é possível fazer qualquer coisa, apesar de tudo. Acreditamos num futuro melhor para estas pessoas.”

Meio milhar de refeições entregues por dia

Os 600 voluntários da Comunidade Vida e Paz, que se dividem em 54 equipas, entregam cerca de 500 refeições por dia, em 100 pontos da cidade. Cada um dos quatro circuitos (A, B, C e D), que saem 365 dias por ano, leva entre 100 a 120 refeições para serem distribuídas. Em 2012 foram entregues 190.320 jantares. Se, por acaso, faltar comida a uma das carrinhas, o responsável liga a outra a pedir um reforço.Além disso, cada carro tem 10 a 15 “kits de emergência”, com sumos e bolachas, para as noites em que excecionalmente existem mais sem-abrigo em Lisboa. A comunidade entrega diariamente duas sandes em carcaça do dia, bolo seco, uma peça de fruta e um pacote de leite ou iogurte.

O sr. João que vive num muro nas Amoreiras

Está há três anos na rua, não quer fotografias e diz chamar-se João Vitória. “Por que estou aqui? Calhou.Não posso dizer a verdade, não posso dizer quem sou”, respondeu, antes de receber a comida que colocou junto a três malas de viagem e a uma cama improvisada num muro na zona das Amoreiras. “Não pensava que existisse tanta gente na rua. Mas também não pensei que houvesse tanta ajuda. Ainda bem que é assim”, desabafou Amorim. Seria menos mal que todos conseguissem ocupar espaços como aquele que alguns “conquistaram” num prédio abandonado na zona deSantos. Mas não é fácil, porque as próprias pessoas sem-abrigo criam grupos, quase impenetráveis. Importante é ajudar, numa altura de mudança, em que, com a crise a crescer, há cada vez mais gente na rua. A ajuda faz-se essencialmente de respeito. Porque... ninguém nasce sem-abrigo.