Decifrando imagens do passado

RedVC

#810
Citação de: Petrov_Carmovich em 24 de Agosto de 2018, 22:15
Spoiler
Citação de: RedVC em 24 de Agosto de 2018, 21:43
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Nas escadarias da Quinta Nova (parte II) – Os Mestres Ingleses de Carcavelos.



Quatro das colectividades que foram total ou essencialmente constituídas por atletas Ingleses. O seu papel foi fundamental para a génese e difusão do Futebol em Portugal. Fonte: hemeroteca de Lisboa.



Ao mesmo tempo (se não antes...) dos Portugueses, diversos membros da comunidade Inglesa no Porto e em Lisboa deram também uma contribuição fundamental para a difusão do Futebol em Portugal. Eram geralmente empregados de empresas Inglesas com representação e actividade comercial em Portugal, que praticavam o Futebol entre outras das numerosas actividades sociais e desportivas promovidas pelos seus Clubes.


Na cidade do Porto o mais notável dos clubes Ingleses foi o Oporto Cricket Lawn-Tennis Club (fundado em 1855 mas que ainda hoje existe) inicialmente implantado na zona do Candal em Gaia e mais tarde sediado em Campo Alegre, ver: https://www.oportocricketclub.com/history.htm). Em outros Clubes Portuenses, tais como o Leixões Football Club e o Boavista Football Club, viria a ocorrer uma curiosa interacção entre Ingleses e Portugueses, em que os Britânicos tiveram um papel inicial importante para mais tarde se afastarem.


Em Lisboa foram relevantes o Lisbon Cricket Club (fundado por volta de 1873 e implantado na zona da Cruz Quebrada, pela comunidade Britânica ligada aos caminhos de ferro em Portugal) e o mais notável de todos, o Carcavellos Cricket and Football Club mais tarde apenas conhecido apenas por Carcavellos Club.

O Carcavellos Club estava sediado desde 1873 na Quinta Nova em Carcavellos e era a componente desportiva e social da Eastern Telegraph Company, a grande empresa Inglesa responsável pela instalação em Portugal de cabos submarinos de telecomunicação. Mas lá iremos.

À semelhança do Porto, existiram também Clubes com interessantes associações entre Portugueses e Ingleses. Entre esses salientaram-se o Gillman FC (na zona de Sacavém da fábrica de loiças Gillman), o Colonials (da Colonian Oil Co), o clube de Braço de Prata e claro o mais célebre dentre todos, o CIF- Clube Internacional de Futebol (onde pontificaram os irmãos Vilar, os Pinto Basto e os Barley, entre outros).



Lugares



Fonte: CM Cascais, CM Sintra, Delcampe e AML



Falando da história conhecida - que está longe de ser a factualmente completa - existem lugares incontornáveis para o aparecimento e difusão inicial do futebol em Portugal. No final do século XIX, "futebolou-se" no

● Largo da Achada na Madeira,
● Jardim da Parada em Cascais,
● Quinta do Bonjardim em Belas,
● Campo Pequeno em zona onde seria construída a Praça de touros,
● Pátio das Malvas em Belém,
● Terras do Desembargador às Salésias também em Belém,
● Candal em Gaia
● Campo Alegre no Porto.

Muitos outros locais vieram depois a ser utilizados mas entre os primeiros e mais prestigiados há que salientar sempre a Quinta Nova em Carcavelos.



Fonte: AML



A Quinta Nova ou Quinta de Santo António ou Quinta dos Ingleses é um local nem sempre devidamente lembrado, mesmo que seja consensual que ter sido um espaço incontornável para a génese do Futebol em Portugal. É notória a importância do papel dos Ingleses na divulgação e prestígio do Jogo no final do século XIX e princípio do século XX.



A Eastern Telegraph Company e o Carcavellos Club


Voltando à Eastern Telegraph Company, empresa responsável pela instalação de cabos submarinos de telecomunicações transatlânticos.





O Cabo submarino é o meio de comunicação que suporta a maior parte dos gigantescos volumes das comunicações internacionais. No passado esses cabos eram feitos de fios de cobre (hoje são fios de vidro) rodeados de plástico e fios de aço. No seu interior circulavam electrões (hoje são fotões) que possibilitam a circulação instantânea de enormes volume de informação entre continentes (fonte: ANACOM ). A melhor analogia que podemos fazer da importância – que se mantém - dos cabos submarinos é que eles estão para o nosso planeta como o sistema nervoso está para o corpo humano.

Foram, são e serão, fundamentais para o nosso meio de vida, assente nas tecnologias da informação. A sua origem é bastante antiga e merece um pequeno resumo.

A instalação de cabos submarinos em diversas partes do mundo iniciou-se em meados do século XIX e teve uma contribuição fundamental por parte das empresas Britânicas. Essa instalação mereceu a prioridade política e financeira dos governos Ingleses dessa época, que acertadamente a julgaram decisiva para manter a coesão e pujança do Império Britânico e da Commonwealth. Foram essenciais para suportar o aumento inusitado de fluxos de pessoas e bens desse tempo.

Esse final do século XIX foi marcado por grandes transformações, por uma torrente de inovações tecnológicas que modelaram muito do que é o actual modelo de vida ocidental. O aumento do volume e da rapidez do fluxo de informação e a facilidade a que a ela acediam um número crescente de pessoas, gerou uma aproximação nunca antes vista de pessoas e culturas.

Em 1870, o governo português concedeu à Falmouth, Gibraltar and Telegraph Company a possbilidade de instalar um Cabo Submarino para transmissão de mensagens telegráficas entre Inglaterra, Portugal, Gibraltar e Malta. No decurso, seria em 1872 que os descendentes do Morgado da Alagoa venderiam a Quinta Nova de Santo António em Carcavelos, para a instalação da referida Companhia.

No entanto em Fevereiro de 1873, a dita companhia transferiria a concessão para a Eastern Telegraph Company (mais tarde Cable & Wireless) que prosseguiu as actividades. O Carcavellos Club era uma estrutura organizada e elitista que juntava os empregados da Eastern Telegraph Co e respectivas famílias em actividades sociais e desportivas nos seus tempos de lazer.



Fonte: CM Cascais



A instalação dos Ingleses da zona de Carcavelos marcaria uma rotura profunda entre uma localidade pequena, rural e estagnada do passado para uma localidade dinâmica e crescentemente cosmopolita. Ainda nos dias de hoje, Carcavelos goza de uma prestigiada auréola turística e de veraneio. Apesar da Companhia do Cabo Submarino ter sido extinta em 1962, a Quinta Nova mantém-se como um espaço de forte e frutuosa ligação entre a comunidade Britânica e Portuguesa, uma vez que ali funciona a prestigiada Saint Julian's School.

Entre as diversas modalidades praticadas pelo Carcavellos Club destacaram-se o futebol, a corrida, o ténis, o cricket, o râguebi, o ciclismo e o golfe (na Ajuda). Estas modalidades eram praticadas de uma forma muito British, o que equivale a dizer que primavam pela disciplina, ecletismo e competitividade: eram esses os exemplos enquanto desportistas, dados por essa comunidade Britânica. O crescente (embora altamente seleccionado) contacto com comunidades Portuguesa foi decisivo para a divulgação e popularidade de hábitos desportivos, aproveitando os crescentes períodos de lazer que alguns Portugueses já iam tendo.



Algumas das diversas modalidades desportivas praticadas na Quinta Nova. Fonte: Delcampe



As equipas de futebol do Carcavellos Club adquiriram rapidamente grande prestígio ao ponto de que as suas equipas participaram nos primeiros campeonatos regionais disputados em Lisboa, arrebatando os títulos. Note-se que então, à falta de uma competição nacional, esse Campeonato Regional era a mais importante competição de futebol de Portugal. Equipando primeiro de branco com uma lista azul e depois com camisola negra e calção branco, as equipas dos Mestres Ingleses de Carcavelos mostram-se um adversário temível, arrebatando à conta de goleadas sucessivas os primeiros títulos desportivos do Futebol em Lisboa!




Fonte: Em Defesa do Benfica, AML e Hemeroteca de Lisboa



O derby Luso-Inglès


Ficaram célebres os embates entre o Carcavellos Club e o Sport Lisboa. Durante quase uma década defrontamos as equipas de futebol dos Mestres Ingleses, somando um total de 27 jogos. Recomenda-se vivamente, a leitura do texto de Alberto Miguéns: Os Imprescindíveis em Carcavelos. Há Mais de 100 Anos, ver: https://em-defesa-do-benfica.blogspot.com/2017/02/os-imprescindiveis-em-carcavelos-ha.html.

Como se pode ler nesse trabalho, o SLB conseguiu vencer por 7 vezes... Nenhum outro Clube Português actual, venceu uma única vez os Mestres Ingleses do Carcavellos Club. Esse é um privilégio que só nós conquistamos.

No princípio a norma era sofrermos derrotas pesadas, algo que acontecia a todos os outros Clubes. E quando a maré virou, os Ingleses prudentemente retiraram-se das competições, percebendo que o seu tempo tinha terminado. Esse ano de 1914 marcou o fim de várias eras.

Para além disso, um facto notável é que 4 dessas 7 vitórias foram conseguidas em plena Quinta Nova: 1906/1907 (2-1), 1910/1911 (1-0), 1911/1912 (1-0) e 1913/1914 (3-0). As 3 restantes vitórias foram obtidas noutros campos: 1909/1910 na Feiteira (1-0), 1912/1913 em Palhavã (2-0) e 1913/1914 em Sete Rios (2-0).


E ilustrando alguns desses jogos memoráveis:



A primeira vitória sobre o Carcavellos Club e logo na Quinta Nova. Adaptado de Em Defesa do Benfica.





Uma das grandes vitórias do Benfica sobre o Carcavellos Club. Fonte: Em Defesa do Benfica, AML e Hemeroteca de Lisboa




Uma derrota no dia em que a Feiteira bateu o recorde de assistência pois terão estado presentes cerca de 8 mil pessoas. Fonte: Hemeroteca de Lisboa e AML



O futebol praticado pelo Carcavellos Club era tipicamente Inglês, com passes largos, correrias e centros bem medidos. A disciplina, a preparação física, a organização táctica e a capacidade técnica dos seus futebolistas eram algumas das virtudes que acentuavam as diferenças e explicavam as recorrentes goleadas sofridas pelos Portugueses.

Assim, com os Mestres Ingleses aprendemos o Jogo de Futebol nas suas diversas vertentes, tácticas, técnicas, físicas e motivacionais. Deles admiramos a intensidade e eficácia do seu futebol. Eram – tanto quanto sei - funcionários da Eastern Telegraph Company sendo que alguns eram também antigos jogadores das Ligas Inglesas de Futebol. Esses jogadores manteriam certamente muitas das suas qualidades, moldadas em campeonatos competitivos do final do século XIX, alguns com assistências de dezenas de milhares de espectadores. Eram outros campeonatos...

O Carcavellos Club é uma lenda. É pena que os seus arquivos não estejam localizados e disponíveis. Se existirem estou certo que poderiam dar-nos mais entendimento e deleite acerca desse período fundamental do Futebol Português e do Futebol Benfiquista em particular.


Honra e Glória ao Carcavellos Club!





[fechar]

Só um pequeno aparte de cariz pessoal, RedVC. Fiquei muito contente por saber que a infelizmente já destruída Quinta da Feiteira (e já agora a Junta de Freguesia de Benfica, que foi a antiga sede do SLB) é perto do sítio onde resido atualmente, sendo que também fica perto da Vila Ana que ainda existe ao fim destes anos com a Vila Ventura (pelo menos parece que é desta que vão renovar a zona para habitação local):


Desculpa lá usar o link da imagem do teu tópico, mas estou a tentar mostrar aqui uma coisa.



Isto para um rapaz que nasceu em Peniche, é como tropeçar em tesouros da história de Lisboa  ^-^




Uma zona cheia de História Benfiquista. Gloriosa.  :cool2:


Renovação? Mas a renovação implica a demolição das duas casas?

Na verdade parecem umas ruínas. Ainda há pouco tempo vivia uma Senhora de idade numa delas.





http://retalhosdebemfica.blogspot.com/2009/12/origem-da-vila-ana-e-da-vila-ventura.html


A Vila Ana é a mais velha. foi construída em 1890 enquanto que a :huh: Vila Ventura estava em construção no início de 1910 aquando deste jogo



Uma nota interessante é que o general Spínola e o escritor Luiz Pacheco viveram na Vila Ana.


Uma nota pitoresca é que considero que a Quinta da Feiteira apesar de ter condições algo precárias tinha o primeiro "camarote" Benfiquista de sempre  :cool2:

Esse "camarote" era a varanda dos Lobo Antunes que tinham uma Quinta "Alemã" bem ali em frente. Os manos Lobo Antunes cresceram por ali. Eram quase todos Benfiquistas. E o pai deles chegou a ser nosso hoquista!

:slb2:


RedVC

Pedindo a licença de Alberto Miguéns




Imagem actual com referência ao antigo campo e vivendas em redor



O camarote dos Lobo Antunes com assistência num jogo contra o Carcavellos Club (estão lá Senhoras com duas sombrinhas)


E depois a mais cómica baliza de sempre





Aquela trave era TORTA!  :2funny:




Petrov_Carmovich

Por aquilo que me contaram e de um desenho de projeto que vi afixado à entrada das vilas, já arranjaram uma casinha nova para a senhora idosa, não sei aonde, e vão remodelar o espaço das vilas. Vão manter o aspeto original das habitações com umas alterações à volta e por trás para aquilo ficar mais bonito. :)

Já tinha ouvido falar dos Lobo Antunes viverem em Benfica, o General Spínola (ideologias à parte) e o Sr. Pacheco nunca tinha ouvido, mas fico contente por haver gente conhecida que aprecia esta zona de Lisboa.

Mas essa da Quinta ter um camarote é nova para mim. Bom suponho que fosse um luxo para aqueles tempos. :)

E por falar de hoquistas, podia falar do Sr. António Livramento que nos seus últimos anos de vida, gostava de ir ao restaurante "Também Quero" no Bairro das Pedralvas. Mas aí já não posso dizer nada, pois só apareci na zona em 2010, e o senhor já tinha partido para o Outro Lado.

Mas posso mostrar umas coisas que comprovam aquilo que digo...

https://www.fregues.pt/noticias/desporto/34-o-retiro-de-antonio-livramento.html



...e o Sr. Miguel Fernandes do referido restaurante...



...mas tu já devias saber isso, provavelmente.

RedVC

Citação de: Petrov_Carmovich em 24 de Agosto de 2018, 22:48
Por aquilo que me contaram e de um desenho de projeto que vi afixado à entrada das vilas, já arranjaram uma casinha nova para a senhora idosa, não sei aonde, e vão remodelar o espaço das vilas. Vão manter o aspeto original das habitações com umas alterações à volta e por trás para aquilo ficar mais bonito. :)

Já tinha ouvido falar dos Lobo Antunes viverem em Benfica, o General Spínola (ideologias à parte) e o Sr. Pacheco nunca tinha ouvido, mas fico contente por haver gente conhecida que aprecia esta zona de Lisboa.

Mas essa da Quinta ter um camarote é nova para mim. Bom suponho que fosse um luxo para aqueles tempos. :)

E por falar de hoquistas, podia falar do Sr. António Livramento que nos seus últimos anos de vida, gostava de ir ao restaurante "Também Quero" no Bairro das Pedralvas. Mas aí já não posso dizer nada, pois só apareci na zona em 2010, e o senhor já tinha partido para o Outro Lado.

Mas posso mostrar umas coisas que comprovam aquilo que digo...

https://www.fregues.pt/noticias/desporto/34-o-retiro-de-antonio-livramento.html



...e o Sr. Miguel Fernandes do referido restaurante...



...mas tu já devias saber isso, provavelmente.


O grande especialista em hóquei Benfiquista é Alberto Miguéns. Aliás em tudo...  :cool2:


Obrigado pelas fotos. Excelentes!


Não conhecia esses hábitos de Livramento mas ele foi para o SL Benfica vindo do Fófó. Tenho ideia que jogava futebol mas Torcato Ferreira resgatou-o para o hóquei.

Foi pena que só tenha ganho títulos Europeus quando foi para o SCP. Tivemos de esperar por gerações seguintes. Não é do meu tempo mas o meu Pai dizia que ele era mesmo um craque.

RedVC

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Por terras Açorianas (parte I) – Um desafio no Relvão


Julho de 1914. Campo do Relvão, Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores.



Fonte: CEHR, Universidade Católica Portuguesa



Vinte e cinco homens, organizados em duas equipas de futebol, posam no Campo do Relvão, terreno usado por uma das equipas presentes, o Angra Sport Club, um clube fundado no ano anterior.


A outra equipa de futebol era constituída por marinheiros da guarnição do poderoso Cruzador NRP-Adamastor, que por essa altura estava ancorado ao largo da Ilha Terceira. O cruzador estava de regresso da costa Brasileira, onde esteve em missão oficial nos finais de 1913.


É sabido que não foram raras as partidas de futebol que nessa época opuseram equipas açorianas e equipas marinheiros de navios de guerra (por vezes Ingleses) ancorados ao largo das ilhas. O que é raro é aparecerem fotografias a testemunharem esses eventos. Daí o interesse das fotografias que serão apresentadas neste e no próximo texto. Mas haverá mais motivos de interesse.



A Ilha Terceira com Capital em Angra do Heroísmo tinha na altura cerca de 47-000 habitantes e dois concelhos, o de Angra e o da Praia na parte Leste da Ilha.




O mítico Campo do Relvão


Lendo sobre o Campo do Relvão, percebe-se era um campo muito peculiar, algo inclinado, embora dotado de um excelente enrelvado. Situado na vertente Leste do Monte Brasil, o campo entende-se desde as muralhas da Fortaleza de São João Baptista até à Baía de Angra do Heroísmo. É um local histórico que foi utilizado para manobras militares desde os tempos da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834) e para local de castigos e execuções por fuzilamento, aquando da Batalha do Pico do Seleiro, a 4 de Outubro de 1828.

Alheios a esse negro passado, desde o final do séc. XIX até ao ano de 1924, os pioneiros do futebol Açoriano usaram o Campo do Relvão para muitas das primeiros jogos disputados na formosa Ilha Terceira. Ora, foi justamente a partir de 1914, ano em que se disputou o jogo em que estamos interessados, que o Campo do Relvão passou a ser mais intensamente utilizado em treinos militares. Essa utilização militar deixava o campo impraticável para o futebol, situação similar à que aconteceu uns anos antes nas Salésias em Belém e que levou o nosso Clube a mudar-se para a Quinta da Feiteira em Benfica. Na ilha Terceira, somente depois de 1924 o cenário mudaria quando uma série de vontades permitiu a construção do parque de jogos municipal da cidade de Angra de Heroísmo.


Mas voltando ao jogo de 1914, duas fotografias adicionais ilustram-nos fases da partida e mostram de forma bem evidente o tal desnível do terreno de jogo no Campo do Relvão.



Duas fases do jogo. Fonte: CEHR, Universidade Católica Portuguesa´



Talvez um olhar mais atento e algum poder de adivinhação permita diferenciar os jogadores das duas equipas mas confesso que nem tentei fazê-lo. Os equipamentos eram semelhantes, predominando a cor branca, sendo possível que o preto e branco esconda detalhes diferenciadores.

Nota-se também a presença de alguma assistência ao redor do campo. Sempre seria um dia diferente do habitual... E pouco mais se poderá extrair das fotografias. Há ainda uma quarta fotografia com um particular motivo de interesse mas antes falemos um pouco dos pioneiros do Futebol Terceirense.




O famoso Campo do relvão é hoje o Parque Municipal do Relvão, local bastante aprazível. Fonte: http://www.cmah.pt



Os primórdios do Futebol Terceirense


Nota prévia: muito do que se vai dizer sobre os primórdios do futebol Terceirense teve uma fonte de excelência, o Senhor Carlos Enes e o seu apontamento "Penteando a memória": ver http://www.rtp.pt/acores/comunidades/penteando-a-memoria-22--carlos-enes_40796 e também http://www.rtp.pt/acores/comunidades/penteando-a-memoria-43---carlos-enes_41055


Na Ilha Terceira, tal como aconteceu em Lisboa e no Porto, o Futebol terá sido introduzido por jovens das classes mais favorecidas que divulgaram e praticaram o Jogo nesse final do século XIX, quando regressaram dos seus estudos em Inglaterra. Sabemos aliás alguns dos seus nomes tais como Thomé de Castro (de quem falaremos mais à frente), Eduardo Abreu e José Narciso Parreira Coelho.

Desde esses dias e apesar das condições precárias, a carolice predominava e o futebol lá foi gradualmente enfeitiçando a juventude terceirense residente na cidade de Angra do Heroísmo. Mais tarde começou a ser praticado na Praia da Vitória, na parte leste da Ilha. Depois, nas décadas de 20 e 30, surgiriam também clubes nas freguesias de cariz mais rural tais como a Serreta, Lajes e Vila Nova, compondo o rico panorama do futebol Terceirense nessa primeira metade do século XX.

Assim nessa década de 1910-1920 há informação da existência dos seguintes clubes: Grupo Foot-Ball Angrense, Republicano Sport Club, Angra Sport Club, Recreio dos Artistas Sport Club, Unidos Sport Club, União Sportiva dos Empregados do Comércio.

Esse facto explica que em 1921, representantes de Clubes Açorianos da época e de pioneiros como Thomé de Castro, o Visconde de Agualva, Braga Paixão, João Baldaia do Rego, Jorge Forjaz, major Belo de Almeida e o capitão Borges de Alpoim, estivessem na base da fundação da "Liga da Educação Física de Angra do Heroísmo", organismo que precedeu a formação da Associação de Futebol de Angra de Heroísmo (1931).



Rivalidades Terceirenses


O Lusitânia SC (ou Sport Clube Lusitânia ou Lusitânia dos Açores) foi fundado em 1922, é considerado o Sporting da Ilha terceira. O Lusitânia SC é o mais antigo Clube Terceirense ainda em actividade e o mais vitorioso em títulos Terceirenses

O seu mais antigo e maior rival é o Sport Clube Angrense, fundado em finais de 1929. O SC Angrense é uma Delegação do Sport Lisboa e Benfica e claro a esmagadora maioria dos seus adeptos torcem pelo SLB enquanto os do Lusitânia SC torcem pelo SCP. As rivalidades Terceirenses são assim muito vivas, sentidas com a paixão das cores que bem conhecemos.

Para compor o cenário há ainda a referir o Sport Clube Praiense, um terceiro Clube que mantém acesa rivalidade com os outros dois. Ao contrário dos outros dois, o SC Praiense não é de Angra mas sim da Praia da Vitória, na parte Leste da Ilha Terceira.






As cores da maior e mais antiga rivalidade Terceirense. Duas equipas dos anos 50 do SCA e do SCL.



Entre os jogadores que o SCA deu ao futebol Português destaca-se Pedro Pauleta. Foi pena que não tenha usado o manto sagrado durante a sua excelente carreira.





Já Eliseu, o outro nome maior do futebol Terceirense, foi contratado em 2002 pelo CF Belenenses ao Sport Club Marítimo de Angra do Heroísmo (de quem é aliás a filial nº 7). Como sabemos, Eliseu veio a brilhar com o manto sagrado desde 2014 até à época passada. Boa sorte Eliseu para o teu futuro e obrigado por tudo o que deste ao SLB!



Eliseu, um Açoriano de coração Benfiquista! Fonte: SAPO desporto



No próximo texto vamos olhar para a tal quarta fotografia do jogo de 1914 e vamos falar nos dois homens que lá estão representados. Um deles é um ilustre pioneiro do Sport Lisboa e Benfica. Será um texto de grande fôlego mas importante para reunir factos relativos à sua (notável) vida e aos primeiros anos da História do Glorioso.





RedVC

#815
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Por terras Açorianas (parte II) – Um Belenense entre Açorianos


Começamos este texto com a quarta fotografia do jogo de 1914 que no Campo do Relvão, na Ilha Terceira, opôs o Angra Sport Club a uma equipa formada por marinheiros do cruzador NRP-Adamastor.



Fonte: CEHR, Universidade Católica Portuguesa



Os dois homens que nos aparecem na fotografia foram sportsman ilustres dessa época. Um deles era Açoriano, o outro era natural de Belém, uma das terra-berço do nosso Clube.

O sportsman Açoriano era Thomé de Castro, cujo nome foi mencionado no texto anterior. Thomé de Castro foi um dos tais antigos estudantes Açorianos que ao regressar de Inglaterra divulgou o Jogo na Ilha Terceira. Esteve também ligado à fundação do Angra Sport Club (1913).

Em 1922, ou seja oito anos mais tarde, Thomé de Castro estaria ligado à fundação de outro clube, o Sport Club Lusitânia (ou Lusitânia Sport Clube ou Lusitânia dos Açores). Este clube formou-se da junção de vontades e consequente extinção do Angra Sport Club e do Recreio dos Artistas Sport Club, aos quais se juntaram 8 jogadores do União Sportiva dos Empregados do Comércio. Thomé de Castro terá tido um papel relevante nesse processo.



Destaque a Francisco Reis Gonçalves, organizador do team do "Adamastor". Fonte: CEHR, Universidade Católica Portuguesa




Mas voltando à fotografia de 1914, a legenda original diz-nos que o segundo homem era o "captain do team" do Adamastor, o Guarda-Marinha Reis Gonçalves. Temos aqui portanto a única fotografia conhecida em que nos aparece Francisco Reis Gonçalves usando calções num campo de futebol.

Para os que não se lembram, Francisco dos Reis Gonçalves foi um dos 24 fundadores do Sport Lisboa. Ele foi um dos miúdos que na manhã de Domingo, dia 28-02-1904, se reuniram na Farmácia Franco em Belém para formalizar o Acto fundador do nosso Clube.




Excerto de uma carta de Francisco dos Reis Gonçalves ao jornalista Mário de Oliveira, em que se assumia como fundador do SLB. Fonte: História do SLB 1904-1954.



No dia em que o nosso Clube foi fundado, Reis Gonçalves tinha apenas 17 anos, 3 meses e 15 dias de idade. Reis Gonçalves era um dos mais novos entre os 24 fundadores do Sport Lisboa. Os 24 fundadores apresentavam uma média de idades de 20 anos, variando entre os 16 anos incompletos de Joaquim José Linhares d'Almeida e os 32 anos de Manuel Gourlade... Um Clube fundado por miúdos de famílias de todas as classes sociais, quase todos a residir em Belém, e que em comum tinham apenas a paixão do jogo e do associativismo. Notável!




Esquerda: simulação de um cartão de Associado do Clube de Francisco dos Reis Gonçalves. Centro: gráfico das idades dos 24 fundadores. Direita: documento do Acto Fundador do Sport Lisboa.





Um filho dilecto de Belém




Francisco Reis Gonçalves (13-11-1886 – 25-08-1955)



Francisco nasceu em Belém, no dia 13-11-1886. Era filho de Francisco dos Reis Gonçalves e de Elvira Conceição Ferreira de Almeida. A família morava nessa altura na Rua do Embaixador nº 48. O pai era Beirão, natural de Idanha-a-Nova e negociante (desconheço de que ramo de negócio), a mãe era Lisboeta e doméstica. O casal viria a ter pelo menos mais 4 filhos: Joaquim, Belmira, Florinda e Maria.

Reis Gonçalves é uma figura mencionada de forma recorrente neste tópico, não apenas por ter sido um dos nossos 24 fundadores mas também por via da riqueza da sua vida profissional e das outras contribuições que deu ao Futebol Português.


Como e quando se terá dado a saída de Reis Gonçalves do nosso Clube? Na ausência de detalhes teremos de ir listando os factos conhecidos.


Em 1919 Reis Gonçalves já estava desligado do SLB pois esteve envolvido na fundação do CFB. Mas o que se terá passado desde 1904 até 1919? Há algumas pistas mas poucas certezas.

É sabido que diversos dos nossos Fundadores tiveram presença efémera no Sport Lisboa. É possível que alguns tenham estado de forma quase fortuita na Farmácia Franco pois daí em diante não aparecem não aparecem nos registos, nomeadamente nos treinos de futebol de 1904 e 1905. Reis Gonçalves não foi um desses casos pois esteve em alguns treinos apesar de não ter sido um dos mais regulares. E, como comprovou no resto da sua vida, Reis Gonçalves mostrou estar genuinamente interessado no desporto e na vida associativa na sua Belém natal.

Nesta procura, temos um problema adicional pois, de 1904 a 1908, o Sport Lisboa não primava pela organização. Não sobreviveram listas de sócios nem estatutos, lacunas que são bastante penalizadoras para o nosso conhecimento. Alguma informação sobre a vida interna do Clube pode ser extraída das facturas desse tempo mas é tudo conhecimento parcelar. O Sport Lisboa era um clube de sócios/jogadores cuja motivação maior era jogar futebol e não tanto constituir um clube bem estruturado.



Um quota do Sport Lisboa, sócio nº 23 Cândido Rodrigues, presumivelmente o pai dos Catataus. Fonte: Em Defesa do Benfica.



Faltavam recursos, sobrava paixão pelo jogo. Jogava-se pelo amor à camisola em condições muito precárias. Insuficiências organizativas, carência de recursos e infra-estruturas e o aliciamento de José Alvalade explicam a grande crise de Maio de 1907. Sabemos no entanto que Reis Gonçalves não fez parte dos sócios/jogadores que saíram para o SCP.

Sujeito a surgir melhor informação, nesses primeiros anos Reis Gonçalves terá apenas jogado algumas vezes nas nossas equipas de futebol da 3ª categoria. Talvez não fosse particularmente dotado para o futebol ou então já não teria muito tempo disponível para o Clube por via dos seus afazeres profissionais na Marinha Portuguesa. Em contraste outros fundadores tiveram presença bem mais visível nas 1ªs e 2ªs categorias, a saber: Carlos França, Cosme Damião, Eduardo Corga, Henrique Teixeira, Raúl Empis, os manos José, Cândido e António Rosa Rodrigues e até Manuel Gourlade.

Em Setembro de 1908, o nome de Reis Gonçalves não constava da lista de 54 sócios do Sport Lisboa apresentada aquando da fusão com o Grupo Sport Bemfica. Curiosamente ou talvez não, dos 9 fundadores/jogadores atrás referidos apenas os manos Rosa Rodrigues e Raúl Empis não constavam da lista (tinham aceite o convite do SCP...) Percebe-se assim quantos e quais eram os fundadores que nesse tempo se mantinham mais activos no Clube.



A lista dos 54 sócios do Sport Lisboa apresentada aquando da fusão de 1908. Dela constavam 4 fundadores: Manuel Gourlade, Carlos França, Eduardo Corga e Henrique Teixeira. Há ainda a considerar Cosme Damião (não mencionado pois já era sócio do Grupo Sport Benfica). Reis Gonçalves não constava da lista.



Ora se Reis Gonçalves não constava dessa lista de 1908 será que já estaria afastado do Clube? Será que não concordaria com o projecto de fusão com o Grupo Sport Bemfica? Não temos a resposta mas há factos interessantes a salientar.


O primeiro facto é que a fusão de Setembro de 1908 levou o Clube para a Quinta da Feiteira em Benfica, onde o Grupo Sport Bemfica já praticava Atletismo e Ciclismo. Tinham terminado os dias dos treinos e jogos nas Salésias. É razoável pensar que Reis Gonçalves não terá visto com bons olhos essa perda de ligação a Belém...




Adeus Salésias e Olá Feiteira. O fim de uma era.



Mas ainda assim, mesmo depois dessa grande mudança de 1908, ainda nos aparecem referências à ligação de Reis Gonçalves ao nosso/seu Clube.

De facto, em 1911, quando o Clube também foi forçado a sair da Quinta da Feiteira, Cosme Damião e a Direcção do Clube decidiram alterar o modelo de organização do Clube. O plano era mais vasto e ambicioso mas simplifiquemos dizendo apenas que foi instituída uma sede principal na Baixa de Lisboa (em 1912) e duas sedes (designadas por "delegações"), uma em Benfica e outra em Belém. Ou seja equiparava-se Benfica (antiga sede) a Belém, os locais-berço do nosso Clube e onde existia maior número de sócios.

A delegação de Benfica foi inaugurada primeiro, a 16 de Fevereiro de 1913, com a presença do Presidente da Republica Manuel de Arriaga. Foi organizada principalmente por Alfredo Alexandre Luís da Silva (presidente da Direcção em 1910-1911) e funcionou durante alguns anos na Av. Gomes Pereira sob o nome de "Desportos de Benfica".

Já a sucursal de Belém foi inaugurada em 3 de Dezembro de 1913 e foi chefiada por... Francisco dos Reis Gonçalves. Ou seja, uma vez mais Reis Gonçalves respondeu de forma positiva, envolvendo-se numa iniciativa associativa na zona de Belém!

Sabemos pouco sobre o que foi essa delegação e quanto durou mas não terão sido muitos anos. Sabemos quem a chefiou e que funcionou na Praça Vasco da Gama, ali bem ao lado dos Jerónimos.



Praça Vasco da Gama, local onde em finais de 1913 se situou a delegação em Belém do SLB. A Praça seria arrasada aquando das profundas mudanças trazidas pela Exposição do Mundo Português em 1940 mas nessa altura a filial do SLB já era uma vaga recordação. Fonte: AML



Com esse modelo inovador de organização, o objectivo de Cosme Damião e do Clube era manter tão estreita quanto possível a ligação às gentes dos dois locais-berço do nosso Clube. Pretendia-se também proporcionar melhores condições aos atletas locais num tempo em que as deslocações eram bem mais difíceis.

Era uma boa ideia mas infelizmente ao invés dos Desportos de Benfica, a delegação de Belém não vingou. É possível que as orgulhosas gentes de Belém não se tivessem revisto numa delegação. Com a mudança para Benfica, a ligação entre o Clube e as gentes de Belém tinha sido irremediavelmente perdida. É possível também que o encerramento da delegação de Belém tenha marcado o final da ligação de Reis Gonçalves ao nosso Clube. Não sabemos.



Do vermelho para o azul


Depois do seu tempo de SLB viria o tempo do CF "Os Belenenses", clube fundado em 1919. Reis Gonçalves tornar-se-ia uma figura relevante das quatro primeiras décadas do Clube de Futebol "os Belenenses". Era, juntamente com Virgílio Paula (outro dos nossos antigos atletas, ver -214- Doutor coragem, p. 53), uma figura muito respeitada em Belém, dando consistência organizativa ao projecto inicialmente idealizado por Artur Jorge Pereira.

Em 1919, Reis Gonçalves presidiu à Junta Directiva que funcionou como uma junta de instalação, lançando as bases do novo clube. Depois, cumpriria um mandato formal como Presidente da Direcção do CFB de 1920 a 1922. Mais tarde, entre 1934 e 1948 e entre 1950 e 1955, Reis Gonçalves foi também Presidente da Mesa da Assembleia Geral do CFB. Foram três décadas e meia de ligação efectiva ao CFB, sempre respeitado, sempre com poder de influência.



Reis Gonçalves no 24º aniversário do CFB e retratado na galeria dos presidentes do CFB (retrato infelizmente num lamentável estado de conservação). Fonte: CFB e Hemeroteca de Lisboa.




Foi também presidente da Associação de Futebol de Lisboa (1924 a 1926) e participou em diversos fóruns de debate, influência e decisão do Futebol Português.



Membro da AFL e da FPF. Fonte: Delcampe




Olhando para a sua linha de vida e para as múltiplas contribuições que deu ao desporto Português, percebe-se que Reis Gonçalves teve como traço comum, ser sempre fiel às suas origens, às suas gentes e ao apoio às suas instituições mais representativas. Era um filho de Belém e as suas decisões foram sempre coerentes com as suas origens.



Militar brilhante


Francisco dos Reis Gonçalves foi também um brilhante militar de carreira, oficial na Marinha Portuguesa. Teve formação e especialização em Engenharia Naval e esteve embarcado como oficial Engenheiro Maquinista Naval.



Galeria de imagens de Francisco dos Reis Gonçalves no Arquivo da Marinha. Em baixo à esquerda a Imagem do submersível NRP-Espadarte. Em baixo à direita a imagem da ponte do NRP-Golfinho, outro submersível da Classe "Foca" ancorado na doca de Belém. Reis Gonçalves está assinalado. Fonte: AML e Arquivo da Marinha




Nos primeiros anos da sua carreira na Marinha Portuguesa, Reis Gonçalves esteve ligado aos primeiros submersíveis da Marinha de Guerra Portuguesa (ver -131- Mobilis in mobile, p.35). Esteve embarcado no primeiro submarino da nossa Marinha de Guerra (NRP-Espadarte) e acompanhou a construção e viagem inaugural dos outros dois submersíveis da classe "Foca", construídos em Itália: o NRP -Golfinho e o NRP -Hidra. A base dos submersíveis tinha doca situada na zona de Belém, ou seja Reis Gonçalves era militar às portas de casa...

Como Engenheiro Maquinista Naval, Reis Gonçalves cumpriria também serviço em navios de superfície e justamente um deles foi o NRP-Adamastor, o maior cruzador que a marinha naval portuguesa teve naquela época.

Construído nos estaleiros Fratelli Orlando, em Livorno, Itália, o NRP-Adamastor foi um dos navios que em 5 de Outubro de 1910, fundeou ao largo do Terreiro do Paço para assumir um papel importante na instauração da Republica. Nessa ocasião o NRP-Adamastor bombardeou o Palácio Real das Necessidades para dissuadir a resistência das forças monárquicas!

Ao longo do seu período de serviço (1897-1934) o NRP-Adamastor cumpriu também missões de soberania e diplomacia, visitando quase todos os territórios ultramarinos portugueses e vários países estrangeiros, tais como o Brasil ou o Japão. Em meados de 1914, quando parou na Ilha Terceira, o NRP -Adamastor tinha voltado recentemente de uma importante missão na costa Brasileira que visou prestigiar o novo regime Republicano.



O NRP-Adamastor tinha uma guarnição inicial de 215 elementos: 16 oficiais, 36 sargentos e 163 praças. Apresenta-se um modelo, a figura da proa e o estandarte. Fonte: José Luís Leiria Pinto. 2010. CRUZADOR "ADAMASTOR".



Ao longo da sua carreira, Reis Gonçalves ganhou um grande prestígio nos meios navais militares, tendo recebido grande reconhecimento dos seus pares e das elites políticas da época.




Com as elites políticas de então. À direita: Reis Gonçalves, enquanto representante do CFB, agraciado pelo Presidente Óscar Carmona. À esquerda: Reis Gonçalves agraciando o almirante Américo Thomaz com uma distinção honorífica do CFB. Thomaz foi um apaixonado adepto dos azuis do Restelo.




Reis Gonçalves faleceu no dia 25 de agosto de 1955. Já não viu a inauguração do Estádio do Restelo e já não viu o inexorável declínio que o seu Clube sofreu desde então e que persiste até aos dias de hoje. O seu funeral saiu da Igreja de S. João de Deus para o cemitério dos Prazeres, tendo nessa ocasião comparecido muitos dos seus antigos companheiros e amigos, entre eles o Almirante Américo Thomaz, então Ministro da Marinha.



O funeral de Francisco dos Reis Gonçalves. Fonte: DL



A Francisco dos Reis Gonçalves, um dos Fundadores do Glorioso, é devido um enorme agradecimento e respeito por parte de todos os Benfiquistas.
Paz à sua Alma.






alfredo

foi isto que queria evitar quando iniciei a votacao para fazer este tópico um imóvel...
esteve perto de ir para a segunda página...
agora ja está melhor assim...

alfredo

Victor, que tal? quando voltas a contar nos uma história interessante sobre o nosso benfica?

RedVC

Citação de: alfredo em 02 de Novembro de 2018, 14:05
Victor, que tal? quando voltas a contar nos uma história interessante sobre o nosso benfica?

Olá Alfredo, estive fora e neste momento sobre-ocupado com actividade profissional e um outro hobbie que tenho. Como sempre digo - e é verdade - há uma dezena de histórias começadas mas até Dezembro talvez só apareça uma para completar uma trilogia Açoreana

Obrigado pelo interesse e apoio. O Decifrando estará sempre activo embora com intervalos variáveis entre artigos. O Glorioso enche-me a vida mas não me enche a carteira. Antes pelo contrário  :coolsmiley:

RedVC

#819
-222-
De Lavos a Belém; da bola ao cinzel



Capa integral (e detalhe) da revista ilustração Portuguesa, nº 14 da 2ª Série. Desenho notável da autoria do artista Garrido, mostra-nos a bela Taça Lisboa, uma refinada peça de arte que ainda hoje premeia os vencedores da principal regata de Lisboa. Uma bela mulher segura a Taça numa das mãos e lança o olhar sobre a costa ribeirinha de Alcântara e Belém, o palco da competição. Fonte: Hemeroteca de Lisboa



O tempo corre. Passaram já mais de 49 meses desde que por aqui publiquei dois textos acerca da Taça Lisboa e dos homens que a imaginaram: Pedro Guedes (autor do projecto artístico) e Emílio de Carvalho (executante) (ver 12 e 13, "Uma taça e dois pioneiros"; pág. 3).



Emílio de Carvalho na sua oficina de trabalho a cinzelar a maravilhosa "Taça Lisboa". Pedro Guedes assinou o projecto artístico. Fonte: Hemeroteca de Lisboa.



A ideia para o texto de hoje é olhar para trás com renovado foco num desses homens; aquele que a cinzelou. Falaremos mais em detalhe de Emílio da Silva Carvalho, um Glorioso pioneiro que, depois de uma curta e intensa contribuição, abandonou o nosso Clube em Maio de 1907, integrando a primeira e mais dramática debandada de jogadores de futebol da História do nosso Clube.

Enquanto jogador, Emílio da Silva Carvalho foi um dos mais destacados defesas-à-esquerda dos primeiros dias do Sport Lisboa. Era dotado de boa presença física (apesar de progressivamente ir ganhando peso...) sendo por isso qualificado para essa posição.



Emílio Carvalho foi presença constante entre as equipas do Sport Lisboa, de Janeiro 1905 a Maio de 1907.




Emílio de Carvalho ao lado de Henrique Costa, numa acção defensiva durante um jogo entre Sport Lisboa e o CIF, Clube Internacional de Football, disputado na Quinta Nova em Carcavelos.



Emílio de Carvalho, ao lado de José da Cruz Viegas, em plena acção defensiva num jogo do Sport Lisboa contra o CIF, disputado nas Salésias. Fonte: AML.



Pelas fichas de jogo que nos chegaram, percebe-se que Emílio esteve sempre entre as escolhas de Manuel Gourlade para a nossa primeira equipa. Emílio de Carvalho tinha um estatuto que provinha desde os tempos em que integrou as equipas casapianas de 1896-1897.



A célebre convocatória de jogadores do Sport Lisboa Manuscrita por Manuel Gourlade em papel timbrado da Farmácia Franco, no dia 9-03-1905. Gourlade deu particular destaque à presença de Emílio de Carvalho.



Em Maio de 1907, Emílio foi um dos oito jogadores que desertaram para o rico e ambicioso Sporting CP, desencantados com a falta de condições oferecida pelo Sport Lisboa. José de Alvalade, então cheio de dinheiro e sedento de glória desportiva, recrutou jogadores de forma nunca antes vista. O SCP não formava jogadores, não tinha estrutura competitiva, nem paciência para a criar de baixo para cima. Estava sedento de glória e decidiu usar a força bruta do dinheiro.

A estratégia passava por ganhar rapidamente competência ganhadora no futebol e simultaneamente esvaziar desportivamente os clubes mais competitivos de Lisboa. Como naquele tempo os sócios eram quase todos jogadores, essa estratégia era uma séria ameaça à sobrevivência dos clubes com jogadores aliciados. Primeiro virou-se para o Football Cruz Negra que rapidamente se extinguiu. Depois virou-se para o Clube Internacional de Football, que resistiu mais alguns anos e que receberia uma machada ainda maior com o deflagrar da I Guerra Mundial.

Por fim veio o Sport Lisboa. O apetite pelos nossos atletas era tal que José de Alvalade chegou ao ponto de inscrever Manuel Mora e Fortunato Levy, jogadores que já nem estavam em Portugal.




Os nossos oitos ex-jogadores que integraram a primeira equipa competitiva do SCP. Emílio exibe as suas luvas de guarda-redes. Apenas Henrique Costa regressaria.



Os primeiros tempos de Emílio no SCP foram curiosos. Exibindo um notório excesso de peso, Emílio apresentou-se à baliza, usando umas vistosas luvas. Presumo que a experiência não terá durado muito pois nas fotografias do ano seguinte já nos aparece com a camisola Stromp, diferenciada do guarda-redes. Terá talvez recuperado o peso ideal e também a sua posição como defesa-à-esquerda... Aparentemente terá jogado apenas até 1909, altura em que já se apresentava com 34 anos de idade.




Emílio e alguns dos outros dos nossos ex-jogadores. Fonte: Hemeroteca de Lisboa



Entre croquetes e chás dançantes, Emílio ingressou no SCP numa época em que jovem e ambicioso clube parecia ter chegado para fazer frente aos ingleses do Carcavellos Club. A realidade mostraria que estavam errados. A equipa contratada por José de Alvalade apresentava já uma acentuada veterania e rapidamente teria de ser renovada.




Croquetes e chás dançantes, assim era o SCP fino e dinheirudo dos primeiros anos... Fonte: Hemeroteca de Lisboa



Assim, terminado o campeonato de 1907-1908, em que o SCP foi 2º classificado atrás dos ingleses, até ao final da década de 10 as equipas sportinguistas foram quase sempre ultrapassadas pelas Benfiquistas. Sucederam-se casos e polémicas fúteis dentro e fora de campo.

O extremo do grotesco verde parecia ter sido atingido quando o SCP desistiu de um campeonato de Lisboa depois de uma birra dos seus dirigentes que contestaram um dérbi em que o guarda-redes leonino foi expulso por agredir os jogadores Benfiquistas que ousaram... marcar golos! Mas não... Numa outra ocasião, o SCP fez uma falta de comparência num dérbi agendado para... o próprio terreno dos sportinguistas! Foi um clube diferente logo de berço. Foi sim senhor.




Emílio numa pose irreverente entre croquetes e outros desertores do Sport Lisboa. Muitos chás, algum cricket e muito poucas glórias no futebol...


Ora, todos estes elementos biográficos de Emílio sendo interessantes são no entanto já conhecidos. Mas, como atrás se disse, um dos propósitos do presente texto é divulgar alguns elementos biográficos inéditos de Emílio de Carvalho. E como veremos esses elementos cruzam-se de forma inesperada com outras figuras dos primórdios da História do Sport Lisboa e Benfica.



Um Carvalho nascido nos Carvalhais!


Emílio da Silva Carvalho nasceu em 25-05-1875 na aldeia de Carvalhais, freguesia de Lavos, concelho da Figueira da Foz. Era filho de Serafim Gonçalves Carvalho e Maria da Silva. O seu pai, como não poderia deixar de ser, era ferreiro de profissão. A sua mãe era doméstica e natural da freguesia do Paião, localidade também pertencente ao concelho de Lavos.

Carvalhais de Lavos é uma pequena e simpática aldeia, localizada nos arredores De Lavos, concelho da Figueira da Foz. É uma terra com alguma tradição na metalurgia do ferro, fruto da acção laboriosa de serralheiros, pregueiros e ferreiros. Tem também apetência pela promoção das artes, nomeadamente da música folclórica. Não admira pois que Emílio da Silva Carvalho, um dos seus filhos mais dilectos, tenha sido um notável transformador de metais com um apurado sentido artístico.




Carvalhais de Lavos, terra natal de Emílio da Silva Carvalho. Uma terra de tradições na metalurgia e no folclore Português. Fonte: Google e blogue dos Carvalhais.



Os tempos Casapianos


Não sabemos ainda quando, como e porquê aconteceu a vinda do pequeno Emílio para a Casa Pia de Lisboa. Provavelmente terá ficado órfão muito cedo e é possível que entre 1880 e 1885 tenha sido feito um pedido para que entrasse como aluno (interno ou externo, não sabemos) na Casa Pia de Lisboa.

Na Casa Pia, Emílio receberia não apenas uma educação completa com vertentes morais, literárias, artísticas e físicas, mas acima de tudo aprenderia o ofício de cinzelador, ramo profissional em que se distinguiu. Na Casa Pia fez amizades para a vida, sendo parte integrante da notável geração Margiochi que teve alguns membros com notável contribuição para as Artes em Portugal. O futebol foi um elemento agregador, um meio de sedimentação de carácter e valores. Nesse contexto, Emílio viria a participar em equipas e eventos que lhe deram nome próprio nos primórdios do Futebol em Portugal.

Outro elemento biográfico inédito que agora se revela é o de que Emílio foi casado com Elvira Barreto, uma senhora nascida em 10-07-1878, na aldeia do Souto, Covilhã. Esta senhora era a irmã mais nova de Januário Barreto, distinto médico, nascido em 17-04-1877 e também ele antigo casapiano.

É um facto histórico, referenciado pelas gentes casapianas, que Januário Barreto foi o pioneiro entre os pioneiros e o mais entusiasta que introduziu o futebol na Casa Pia. A importância das diversas gerações casapianas no futebol Benfiquista é algo que um dia terá de ser falado mais em detalhe.




Emílio de Carvalho e Januário Barreto entre os membros da famosa equipa casapiana de futebol, vencedora dos Ingleses do Carcavellos em 1896.



Mais importante ainda, o Dr. Januário Barreto foi o primeiro presidente eleito do Sport Lisboa. Essa eleição ocorreu em 22 de Novembro de 1906 e sucedeu a José Rosa Rodrigues, o mais velho dos manos Catataus. Integravam o seu elenco o próprio José Rosa Rodrigues e Manuel Gourlade, ambos como secretários da Direcção e ainda Daniel dos Santos Brito, como tesoureiro. Note-se que, tanto quanto sabemos, José Rosa Rodrigues terá sido nomeado pelos outros 23 fundadores para a presidência sem ter existido uma eleição formal.


Januário Barreto é por isso considerado o terceiro da linha cronológica dos presidentes nossa história, isto levando em conta as cronologias do Sport Lisboa e do Grupo Sport Bemfica. Mais tarde, tal como Emílio, Couto, entre outros, o Dr. Januário Barreto ingressaria no SCP onde viria a integrar o Conselho Fiscal até à data da sua precoce dramática morte, ocorrida em 23-06-1910. Era um homem de notáveis qualidade morais e desportivas, cuja falta foi muito sentida na organização e disciplina dos primeiros anos do Futebol em Portugal.




Januário Barreto, distinto médico que foi – erradamente – considerado durante muito tempo o 1º presidente do Sport Lisboa.



Voltando a Emílio de Carvalho, ao que sei, deixou de ter visibilidade pública no final da década de 10 do século XX. Sabe-se que entre 1917 e 1920 integrou o Conselho Fiscal do SCP, o seu último cargo público conhecido. Depois terá dedicado o seu tempo ao seu ofício de cinzelador, havendo referências que foi comerciante, talvez das próprias peças que ia produzindo na sua oficina.


Emílio de Carvalho faleceu no dia 7-03-1947 com a idade de 71 anos. Morreu três meses antes de Cosme Damião, que era 10 anos mais novo. Emílio faleceu vítima de arteriosclerose na sua casa situada na Estrada de Benfica nº 680, 2º direito. Não terão sido fáceis os seus últimos anos.


Foi sepultado no cemitério de Benfica onde tem por companhia entre outros, nomes como os seus antigos companheiros José Netto, Francisco dos Santos e o atleta Francisco Lázaro. Paz à sua Alma.








RedVC

#820
-223-
Dos Sudetas às Amoreiras (parte I): o caminho para o Sado


Um jovem emigrante checoslovaco, chegado a Portugal no ano de 1926.





Chamava-se Arthur Frank John e era professor de educação física, treinador e antigo árbitro de futebol. Uma combinação interessante para a época.

Arthur chegou a Setúbal no princípio da década de 20 para jogar e treinar a equipa principal de futebol do Vitória Futebol Clube (VFC). Em menos de uma década conquistaria diversos títulos de futebol dos campeonatos regionais de Lisboa e Setúbal pelo VFC e, mais importante do que tudo, um Campeonato de Portugal enquanto treinador do Sport Lisboa e Benfica.

Neste e num próximo texto, falar-se-à de aspectos relevantes da vida deste homem, percebendo que manteve durante toda a sua vida um espírito curioso e irrequieto, um olhar vivo, inteligente e inquisitivo. Entre outros factos da sua vida, Arthur John foi um homem que deixou marca no futebol Benfiquista.

Arthur John teve a honra de ser o primeiro em vários aspectos. Foi o primeiro treinador estrangeiro do nosso futebol. Foi também o primeiro treinador a conquistar um título a nível nacional para o Benfica. Este pioneirismo justifica desde logo estes textos. Ao longo das décadas que entretanto passaram, a poeira do tempo mascarou alguma da verdade histórica sobre ArthurJohn e por isso aproveitaremos também para desfazer alguns equívocos e inexactidões.



A escola de futebol da Europa Central


O futebol na Europa Central teve uma importância fundamental na evolução do futebol num tempo em que o poderio dos ingleses parecia inquestionável. Quem quer que consulte as publicações da época percebe o nível de intensidade e popularidade que este desporto teve particularmente em países como a Hungria, Checoslováquia, Áustria. Virtuosismo técnico, jogo colectivo e poderio atlético eram atributos reconhecidos às melhores equipas desses países.

Essa escola foi igualmente decisiva no desenvolvimento do futebol em Portugal essencialmente por via dos treinadores que por aqui trabalharam. A maior parte deles assumiu uma aculturação tal que adoptaram Portugal como nova pátria, radicando-se por cá para o resto das suas vidas.

Em particular, o SL Benfica pode apresentar uma galeria de notáveis treinadores Húngaros que trouxeram a experiência competitiva, inovações tácticas, preparação física, enfim todo um saber indispensável para fazer evoluir um futebol provinciano e atrasado.

Apesar da nossa Geografia setentrional não ajudar, nesse tempo o Futebol Português beneficiou da vinda a Lisboa de diversas notáveis equipas de futebol de Leste tais como o Ferencváros, o Sparta Prag, o Szombathelyi, o Nuzelsky, o SK Wienn, o First Wienn, etc. O futebol harmonioso, de passes curtos de grande precisão, praticado por atletas com boa capacidade física foi muito apreciado pelos Portugueses. Tornou-se o modelo adoptado pois ajustava-se também às características anatómicas-tipo dos Portugueses.

Compreende-se assim que o interesse por treinadores – em particular dos Húngaros – tenha crescido. Entre esses treinadores há a destacar os mais ganhadores: Lipót Hertzka, János Biri e Béla Guttmann; mas houve muitos mais.




Uma galeria de treinadores nascidos na Europa Central e que foram campeões ao serviço do Sport Lisboa e Benfica.



Mas não foram só Húngaros. E aliás esses nem sequer foram os primeiros pois precedendo-os, há que referenciar o Checoslovaco Arthur John. Pois... erradamente ao que alguns ignorantes vão propagando, Arthur John não era inglês mas sim checoslovaco. Eventualmente até se pode dizer que era Austríaco de nascimento pois veio ao mundo numa zona que antes da I Guerra Mundial pertencia ao Império Austro-Húngaro. É essa a verdade histórica e é isso que os Benfiquistas devem saber. Os outros que digam o que quiserem.




Título de residência de Arthur Francisco John em Portugal. Nacionalidade checoslovaca. Fonte: ADSTB.




Arthur John entrou no SLB na época de 1929-1930, um tempo turbulento para o nosso Clube, com grandes mudanças introduzidas por via de uma perda competitiva que já vinha do princípio da década. Essas mudanças ocorreram muito pela iniciativa, labor e dinamismo de diversos homens, entre os quais o mais destacado foi o de António Ribeiro dos Reis.

Ora nessa época de 1929-1930, Ribeiro dos Reis estava impedido de orientar o SLB por motivos profissionais. Houve que procurar uma solução externa e essa recaiu num treinador estrangeiro já adaptado ao nosso país e futebol e com um trajecto ganhador no Vitória Futebol Clube. Mas lá iremos.

A escolha de Arthur John revelou-se bem-sucedida, tendo contribuído para a conquista do primeiro título nacional e na progressiva eliminação de alguns vícios individuais e colectivos. Arthur John abriria caminho para que outros estrangeiros, ao longo das décadas seguintes, tivessem aceitação e sucesso.




Arthur John e o plantel Benfiquista de 1929-1930. Fonte: Jornal do SLB



Arthur John chegou ao SLB na terceira década do nosso Futebol. Chegava depois de Manuel Gourlade (1904-1909), Cosme Damião (1909-1926) e Ribeiro dos Reis (1926-1929). Foi o quarto treinador do nosso futebol principal.

Com Arthur John rompeu-se a tradição do futebol Benfiquista estar exclusivamente entregue a Portugueses. Com ele começou uma nova marca identitária do nosso futebol, que, com algumas excepções, consistiu em usar futebolistas exclusivamente Portugueses orientados por um treinador estrangeiro. Arthur John tem a honra de ter sido o pioneiro.



No país dos Sudetas


Filho de Josef Anton John e de Maria Kindiger, o pequeno Arthur nasceu no dia 02-07-1898, na cidade de Most, num período em que os seus pais gozavam um pequeno período de férias.

A cidade de Most (em checo) ou Brüx (em alemão; nome derivado de Brücke que quer dizer ponte) é capital do distrito de Most. Está situada numa região antigamente conhecida por país dos Sudetas, uma região de cadeias montanhosas, posicionada na fronteira entre a antiga Boémia Central, hoje República Checa, a Polônia e a Alemanha. Hoje e depois de todas as mudanças provocadas por duas guerras mundiais, por uma guerra fria e pela queda de um muro, Most pertence à Republica Checa e à região administrativa de Ústí nad Labem.




Most (ou Brüx), terra natal de Arthur John. Fonte: wikipedia.




O facto de a cidade ter um nome que, quer em Checo quer em Alemão, significar "Ponte", é algo que se explica pelo facto de naquela zona existirem inúmeros pântanos e, por via disso, desde o século X, por lá ter sido edificado um intrincado sistema de pontes.

Entre os filhos mais famosos desta cidade destacaram-se o engenheiro e inventor Nikola Tesla (1856-1943) e Joszef Masopust (1931-2015), um grande futebolista, bola de ouro em 1962.




Dois naturais de Most: Nikola Tesla e Josef Masopust (ao lado de Eusébio).




Nota prévia e importante


Muito do que se vai apresentar no resto deste texto foi recolhido a partir de uma excelente entrevista que o grande jornalista Carlos Pinhão fez a Arthur John, em 1967, no jornal "A Bola".

Fica aqui não apenas o devido crédito mas também a carinhosa lembrança e a homenagem a um homem Bom, um jornalista Excepcional e um Benfiquista Verdadeiro; virtudes que combinam muito bem.




Carlos Pinhão (4/05/1934 – 15/01/1993) entre três Saudades do Sport Lisboa e Benfica. Grande entre grandes. Fonte: Largo dos Correios.




O bichinho do futebol


Arthur John iniciou a sua carreira futebolística em 1914, com 16 anos de idade. Iniciou-se no DFC Prag (Deutscher Fußball Club Prag, fundado em 1896), clube fundado por judeus alemães, na sua maioria estudantes da Universidade Carolina de Praga. Curiosamente, comprovando a sua matriz germânica, o DFC Prag foi um dos fundadores da Federação Alemã de Futebol (Deutscher Fussball-Bund; DFB), tendo competido em competições na Alemanha, Áustria, Hungria e Checoslováquia, exemplificando como naquele tempo existia pouca distinção entre competições e nacionalidades, fruto talvez do carácter multinacional do antigo Império Austro-Húngaro.

A subida ao poder dos Nazis obrigaria à fusão do DFC Prag com o Deutsche Sportbrüder Prag (1940) e depois, com o fim da II Guerra Mundial, à extinção do clube (ver mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Deutscher_Fu%C3%9Fball_Club_Prag.




Alguns dos clubes por onde Arthur John passou antes de chegar ao SLB.




A guerra, não a segunda mas a primeira guerra mundial terá forçado Arthur John a interromper a sua carreira desportiva durante alguns dos anos, pois segundo o seu próprio testemunho, terá combatido como piloto-aviador ao serviço do Império Austro-Húngaro.

Em campo, Arthur – que era de baixa estatura - jogava preferencialmente a interior esquerdo, embora qualquer lugar no ataque lhe servisse. Essa sua carreira de futebolista foi bem-sucedida tendo chegado ainda a representar por 3 vezes a selecção checoslovaca.

Arthur John foi portanto, quer como jogador quer depois como treinador, um produto da fabulosa Escola de futebol da Europa Central, que compreendia o futebol de muitos países dessa zona embora entre eles se tenham destacado particularmente o futebol Checoslovaco, Austríaco e Húngaro.

Entre as décadas de 20 e 50, a influência dos numerosos treinadores e jogadores dessa zona foi disseminada por toda a Europa (incluindo o nosso país) não apenas por meio de vitoriosas digressões de diversas equipas mas acima de tudo pela diáspora a que muitos desses homens foram forçados. Essas vagas sucessivas de emigrantes explicam-se pelos frequentes episódios de instabilidade política e social. Por ali o futebol cresceu lado a lado com a tragédia humana, leia-se, pessoas, famílias e povos.

Nessas décadas de 20 e 50, a organização do futebol na Europa Central era já bastante evoluída. Existia muita competição e eram frequentes os embates entre clubes e entre as selecções dos diferentes países. Nesse contexto, Arthur John defrontou diversos clubes Austríacos e Húngaros, tendo por exemplo jogado contra o Hakoah de Viena quando por lá jogava Béla Guttman.

Outro dos seus adversários foi György Orth, que tal como Gutmann veio a ser treinador do FCP (aliás Orth faleceu mesmo na cidade do Porto em Janeiro de 1962) embora o primeiro não tivesse tido a felicidade de treinar o Glorioso. Curiosamente, Arthur John apreciava bem mais as qualidades de Orth do que as de Guttmann. A este último, Arthur John atribuía mais o mérito de saber procurar e trabalhar com equipas dotadas de jogadores de maior classe.



Três grandes treinadores, um Checo ladeado por dois Húngaros.



Ainda na sua relação com Guttmann, há ainda a referir uma história curiosa que Arthur John contava. Na sua a carreira desportiva Arthur John foi também árbitro de futebol. Ao que parece num dos jogos que arbitrou esteve uma partida em que numa das equipas estava o jogador Béla Guttmann. O jogo terá sido algo tenso, tendo John chegado mesmo a ameaçar que iria expulsar Guttmann porque este o incomodava com frequentes e ruidosas verbalizações... Guttmann não se calou e John não achou graça nenhuma. Quem diria que ambos ainda viriam a ser treinadores no distante Portugal e no Glorioso SLB...



De Paris a Setúbal


Arthur John foi um profissional do futebol que desde cedo revelou um raro ecletismo, pois reunia capacidades de preparador físico (era professor de educação), treinador de futebol e... massagista. Ao que parece, quando saiu do seu país em 1922, com a idade de 24 anos já acumulava o cargo de jogador com o de treinador de futebol.

Na sua diáspora pessoal, Arthur John passou primeiro pela Alemanha pelo FC 1900 Kaiserslautern e depois por Munique onde treinou o FC Theutonia Munchen, o qual fez subir da II para a I Divisão Alemã. Passou mais tarde por Espanha, Inglaterra e França. E foi em Paris que Arthur John foi recrutado para vir para o nosso país e para Setúbal em particular. No dia 18 de Dezembro de 1924 Arthur John chegava a Portugal e para jogar e treinar em Setúbal, no Vitória Futebol Clube.

O responsável por esse recrutamento foi Mariano Augusto Coelho (1879-?), um importante industrial sadino, ligado ao sector conserveiro. Mariano Coelho foi um dos fundadores do Clube sadino, tendo assumido o cargo de presidente da Direcção do VFC em diversos mandatos, nos anos 1923-1927; 1930-1932; 1936-1938; 1951-52. Até pelo número de mandatos se percebe a importância que este homem teve nos destinos dos sadinos.



Inauguração do Campo dos Arcos em Setúbal em 1913 e Mariano Augusto Coelho, um dos homens importantes nesse projecto e o homem que trouxe Arthur John para Portugal.




A cidade de Setúbal tem a tradição de saber homenagear os seus filhos mais dilectos ligados ao futebol e associativismo sadino. Assim sendo, tal como com Jorge de Sousa (outra figura importante dos primórdios do clube sadino e fundador do Sport Lisboa em 28-02-1904) e bem recentemente com José Mourinho, Mariano Coelho tem o seu nome atribuído a uma Rua da cidade do Sado.

Tal como Jorge de Sousa, Mariano Coelho foi um dos homens de maior relevância para que o VFC tivesse conseguido edificar o Campo dos Arcos, inaugurado em 1913, o parque desportivo usado pelos sadinos até 1962, ano em que foi inaugurado o Estádio do Bonfim. Quem tiver interesse pode ver aqui ( https://arquivos.rtp.pt/conteudos/futebol-vitoria-de-setubal-vs-sport-lisboa-e-benfica/ ) um resumo de um VFC-SLB de 10-01-1960.

Foi nesse Campo dos Arcos que Arthur John trabalhou e refinou a excelente equipa do Vitória FC da década de 20, levando-a conquistar 2 títulos de Campeão de Lisboa (1923-1924 e 1926-1927; note-se que o VFC competia no Campeonato Regional de Lisboa até 1928) e a 2 títulos de Campeão Regional de Setúbal (1927-1928 e 1928-1929).




Fonte: VIII exército



Quando entrou no VFC, Arthur John seria ainda treinador-jogador, tendo aliás deixado a memória de que até 1926 jogou ainda com a camisola do VFC ao lado grandes nomes do futebol sadino tais como Armando Martins, João Santos e o reforço de ocasião Raúl Tamanqueiro que nesse tempo era jogador do SLB.

No entanto, quer por causa das dificuldades em ler o jogo de forma mais ponderada e rigorosa quer pelo exemplo que dava quando falhava em campo, Arthur John admitia que era uma situação difícil de manter; ou se jogava ou se treinava.




Duas imagens das etapas de Arthur John no VFC. À esquerda, Arthur John em 1925, ainda como jogador-treinador do VFC. À direita, em 1927, como treinador/massagista. Vê-se ainda Aníbal José que no ano seguinte ingressaria no SLB.




Quem ler os jornais daquela época percebe que o VFC tinha uma equipa que praticava bom futebol e que competia de igual para igual com as melhores equipas do Campeonato regional de Lisboa, SLB, SCP e CFB. De acordo com Arthur John, o facto de o VFC ter deixado de competir no Campeonato Regional de Lisboa para passar a competir no de Setúbal, criado em 1927-1928, foi nefasto para o Clube e para a cidade. Integrado na AF Setúbal e disputando o Campeonato Regional de Setúbal, o VFC acabou por definhar por falta de competição adequada.

Arthur John implementou um futebol técnico e dinâmico que se preocupava em ter uma boa preparação física e uma ocupação racional dos espaços, evitando deixar corredores para os adversários. Essa disposição levou-o – segundo disse – a na prática jogar num 3:3:4, ou seja fazer recuar um dos avançados, no caso João dos Santos, jogador criativo embora algo lento.

Mas para lá de João dos Santos, Arthur John teve também a fortuna de dispor de outros excelentes jogadores, alguns dos quais também chegaram a internacionais: Octávio Cambalacho, Aníbal José, Domingos das Neves, Armando Martins, Luís Xavier, entre outros. Apesar desses dias felizes à beira do Sado, Arthur John apenas conquistaria títulos nacionais no SLB.




O treinador Arthur John com uma equipa do VFC e com a sua mala de massagista. Entre os jogadores está Luís Xavier que seria mais tarde uma Glória Benfiquista. Fonte: Hemeroteca de Lisboa.



A ligação de Arthur John ao VFC terminaria em 1929 não sem que antes tivesse orientado uma equipa sadina numa digressão no Brasil que deu brado por bons e maus motivos. Dessa digressão já por aqui se falou, num dos cinco textos feitos para recordar o Tamanqueiro (ver -180- Tamancos de oiro (parte IV) – do Sado ao Rio; pág. 47).



A comitiva do VFC antes da partida para a digressão ao Brasil em 1929. Fonte: AML.




Arthur John viveu mais de 4 décadas no nosso país, tendo sempre procurado aprimorar o seu domínio da língua Portuguesa, isto embora 3 meses após cá chegar já conseguisse escrever na nossa língua. Era um poliglota pois falava Checo, Português, Francês, Alemão e Inglês e compreendia o Italiano e o Espanhol. Casou em Portugal, aculturou-se mas como ele disse não precisou nunca de adquirir a nacionalidade Portuguesa para se sentir... Português.

Quando chegou a Portugal trazia já no seu currículo o Curso Superior de Comércio e isso permitiu-lhe trabalhar como chefe de repartição na Sociedade Geral, empresa no ramo da navegação mercante, fundada pelo grupo CUF (ver detalhes em http://restosdecoleccao.blogspot.com/2010/10/navios-da-sociedade-geral-sg.html). E foi dessa empresa que se aposentou no ano de 1966. Manteve sempre uma genica e capacidade de trabalho durante toda a sua vida, virtudes que o ajudaram também no mundo do Futebol.

Arthur John faleceu em Belém no dia 31-03-1972, com 74 anos de idade.





Num próximo textos falar-se-á das duas temporadas em que Arthur John esteve ligado ao SLB. Há muito que contar e seleccionar. Poderá demorar tempo a montar esse texto mas valerá a pena.


RedVC


alfredo

Citação de: RedVC em 21 de Dezembro de 2018, 21:32




Victor.
Desejo-te um excelente ano novo cheio de saúde e que o Benfica nos deia muitas alegrias.
Obrigado pelas histórias que nos contaste e que ajudam entender melhor a mistica do nosso amado clube.
Um forte abraço e....




RedVC

Citação de: alfredo em 01 de Janeiro de 2019, 20:11
Citação de: RedVC em 21 de Dezembro de 2018, 21:32




Victor.
Desejo-te um excelente ano novo cheio de saúde e que o Benfica nos deia muitas alegrias.
Obrigado pelas histórias que nos contaste e que ajudam entender melhor a mistica do nosso amado clube.
Um forte abraço e....




Obrigado Alfredo, que 2019 seja um grande ano para ti e para os teus.

Que 2019 seja um ano Glorioso em que voltemos a ter um SLB que nos orgulhe.

O tempo não é elástico e agora é tempo de investigar. Quando o Decifrando voltar haverá muitas e boas histórias para contar.

RedVC

#824
-224-
A ilustre Casa do Dr. Meireles




Foi assim que nos foi apresentado o Dr. António de Azevedo Meireles, na "História do Sport Lisboa e Benfica: 1904-1954", a obra de referência da História do nosso Clube.

E de facto, o nome deste ilustre médico consta no topo da famosa lista de sócios do Sport Lisboa que foi apresentada aquando da junção com o Grupo Sport Benfica, em Setembro de 1908.




A lista de 54 sócios apresentados pelo Sport Lisboa para o processo de junção com o Grupo Sport Benfica. Fonte: História do SLB 1904-1954.



Mário de Oliveira e Carlos Rebelo da Silva, os autores da obra de referência da História do nosso Clube tiveram a felicidade de entrevistar diversos homens que participaram nesses tempos pioneiros. Infelizmente foi demasiado tarde para poderem falar com o Dr. António de Azevedo Meireles.

Se o tivessem conseguido teriam obtido uma visão complementar, mais madura, desses dias imediatamente antes e depois da fundação do nosso Clube. Como funcionário ilustre da Farmácia Franco e como entusiasta do futebol, o Dr. Meireles teria histórias, detalhes e visões muito próprias e valiosas.

Passados mais de 114 anos é difícil mas ainda se justifica procurar e descrever aqui, alguns factos menos conhecidos que nos ajudem a melhor compreender a fundação do nosso Clube. Começaremos por falar da ascendência familiar do Dr. Meireles, da sua formação académica e profissional e por fim o que sabemos dos dias em que contribuiu para a fundação e implantação do nosso Clube.



As origens Portuenses


António de Azevedo Meireles nasceu no seio de uma família brasonada da sociedade Portuense. Foi o sexto dos dez filhos da descendência do casal João Pinto de Azevedo Meireles (* 1819 † 1886) e Joana Maria Mavigné (*1828 † 1890).

  •   1 - Emília de Azevedo Mavigné (* ? † ?)
  •   2 - Maria da Conceição de Azevedo Mavigné (* 1852 † ?)
  •   3 - Isabel Maria de Azevedo Mavigné (* 1854 † ?)
  •   4 - João Pinto de Azevedo Meireles (* 1855 † ?)
  •   5 - Álvaro Pinto de Azevedo Meireles (*1856 † ?)
  •   6 - António de Azevedo Meireles (* 1858 † ?)
  •   7 - Artur de Azevedo Meireles (* 1859 † ?)
  •   8 - Hermínia de Azevedo Mavigné (* 1862 † 1892)
  •   9 - Joana Maria de Azevedo Mavigné (* 1866 † ?)
  •   10 - Maria Helena de Azevedo Meireles (* 1868 † ?)



O escritor portuense Mário Cláudio (por sinal adepto do FCP...) é outro dos descendentes desta família e relata-nos na sua obra "A Quinta das Virtudes", detalhes e histórias destas famílias brasonadas (ver: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaio55.htm).


Fundada na segunda metade do séc. XVIII por José Pinto de Meireles, bisavô do Dr. Meireles, esta Quinta das Virtudes ainda hoje existe, estando localizada na Rua Azevedo de Albuquerque, bairro de Miragaia, Porto. Actualmente está lá sediada a Cooperativa Árvore (www.arvorecoop.pt/).



A Quinta das Virtudes, espaço central da obra com o mesmo título do escritor Mário Claúdio.



Com a morte deste José Pinto de Meireles foi o seu filho João Pinto de Meireles, avô do Dr. Meireles, que passou a ser o titular da Quinta. João escolheria o seu destino pois ao se querer casar com uma sua criada, de seu nome Maria Teresa de Jesus Teixeira, acabou por ter de ceder a titularidade dessa Casa ao irmão Joaquim. Assim obrigava a questão da diferença de classes no Portugal do século XIX...

Ora, se o lado paterno do nosso Dr. António era portuense de gema, já a sua mãe ostentava o apelido Mavigné. Apelido Francês, diríamos nós, algo que é corroborado por fontes que ligam o apelido do avô materno do Dr. Meireles a uma antiga família da alta burguesia Francesa. Adicionalmente, os registos de baptismo do Dr. Meireles e dos seus irmãos, indicam-nos uma ascendência britânica para a sua avó materna (apelido O'Keef Bowman), sendo mencionadas as cidades de Bristol, Inglaterra e Dublin, Irlanda.

Convenhamos que esta ascendência materna britânica poderá explicar o gosto que o nosso Dr. Meireles revelou pelo Football Association. Revelou-o na Farmácia Franco, onde foi um ilustre funcionário durante vários anos, incluindo 1903 e 1904, os anos em que se fundou o nosso Clube.



A formação Académica


Em 1882, com apenas 24 anos de idade, o Dr. Meireles defendeu a sua tese de Licenciatura, elegendo um tema algo exótico para a época.



A Tese de Licenciatura do Dr. António de Azevedo Meireles, defendida em 18-07-1882. Fonte Universidade do Porto





Fonte: Dicionário Bibliográfico Português, 1911 e Hemeroteca de Lisboa.




Corpo Catedrático e alunos da Escola Médico Cirúgica do Porto em 1880-1881. Com elevada probabilidade o Dr. Meireles estará ali no meio. Fonte: Hemeroteca de Lisboa.




Os anos de Belém


O Dr. Meireles terá vindo para Lisboa pouco depois da sua defesa da tese, ou seja por volta de 1882. As virtudes e o sucesso profissional do Dr. Meireles cresceram de tal forma que logo depois se mudou para a capital onde veio a ser nomeado médico do Paço Real, acudindo em particular às crises da Rainha-Mãe Maria Pia (mulher do Rei Dom Luís) e da Rainha Dona Amélia (mulher do Rei Dom Carlos).




Referência ao Dr. António de Azevedo Meireles como médico do Paço Real da Ajuda. Fonte: Hemeroteca de Lisboa.



Se foi esta a razão para se fixar em Belém ou se já por ali andava está ainda por apurar mas ao que tudo indica terá prestado serviço médico na Farmácia Franco durante longos anos. Esse facto era normal pois nesse tempo as Farmácias prestavam mais serviços do que a simples comercialização de medicamentos e produtos para a saúde.

E é na Farmácia Franco, berço organizativo do nosso Clube, que concentraremos atenções até ao final deste texto.

Conforme se demonstrou num texto que co-publiquei com Alberto Miguéns (https://em-defesa-do-benfica.blogspot.com/2017/02/com-quantos-anos-de-idade-se-pode.html), o Sport Lisboa foi fundado por um grupo de 24 rapazes com uma média de idades de 20 anos.

Maioritariamente da zona de Belém, esses 24 rapazes tinham diversos tipos de afinidades, fossem parentescos, amizades, vizinhanças ou até actividades profissionais. Há muito ainda para se perceber acerca destes tempos. Quanto mais se sabe mais claro fica que a versão oficial, propagada ao longo dos anos, é apenas uma simplificação de uma realidade mais complexa e bem mais interessante.

Os 24 fundadores não foram os únicos relevantes para o processo de fundação. Teremos sempre que os considerar os autores materiais da fundação mas como nos disse Homero Serpa, alguns até poderão ter aparecido um pouco por acidente na reunião de 28-02-1904. E por outro lado, vários dos que ficaram fora da lista manuscrita por Cosme Damião foram bem mais relevantes nesses primeiros anos.

Falamos de homens como Félix Bermudes, José da Cruz Viegas, José Honorato Mendonça, Duarte José Duarte, Henrique Costa, os irmãos Lopes, Monteiro, Duarte e Serpa, entre outros. Falamos igualmente dos mais velhos, antigos casapianos, como Januário Barreto, António Couto, Emílio Carvalho, José Neto, Francisco dos Santos, Silvestre Silva, Pedro Guedes, David Fonseca, Daniel Queiroz dos Santos, João Persónio, entre outros.

Ao todo falamos de várias dezenas de outros homens que cedo se envolveram com o Clube, envergando orgulhosamente a camisola vermelha, ajudando a criar rapidamente uma mística inigualável. Essa mística seria um factor-chave para resistir a diversas crises, algumas das quais provocadas pela inveja e dinheiro alheio.




Um treino do Sport Lisboa nas Terras do Desembargador às Salésias, algures entre 1904 ou 1905. Quem seriam? O único reconhecível é o jogador negro Marcolino Bragança. Quem seria aquele árbitro vestido de branco? Seria o Dr. Azevedo Meireles?




Mas, para lá dessa rapaziada que jogava à bola, houve também gente mais madura que os apoiava. Desde logo interessa salientar a Farmácia Franco, como o local central para o que aconteceu. Não foi apenas o local da reunião do acto fundador, mas também local onde funcionou a nossa primeira sede.

Tudo isto foi apenas possível pelo beneplácito dos então proprietários da Farmácia Franco, os farmacêuticos Ignácio José Franco (* 1864 † 1931) e o seu irmão Pedro Augusto Franco Júnior (* 1865 † 1960). A estes temos que acrescentar o Dr. Meireles, que por longos anos ali prestou serviço médico, dando consultas e prestando técnico especializado à Farmácia.




A Farmácia Franco e alguns dos seus protagonistas no princípio do século XX.



Fundada por volta do ano de 1821, pelo avô dos dois irmãos Franco, a Farmácia colheu a sua fama essencialmente pela gestão dinâmica, inovadora e empreendedora de seu pai, Pedro Augusto Franco (* 1833 † 1902). Essa gestão envolveu investigação, desenvolvimento e comercialização de produtos próprios mas seguindo uma estratégia de internacionalização, com vendas em países europeus e no Brasil. Existe farta documentação que demonstra que nas duas últimas décadas do século XIX o Vinho Nutritivo de Carne" ("um cálice equivalia a um bom bife") e os "caldos peitorais" eram vendidos em diversos países e continentes.

À notoriedade empresarial, Pedro Augusto Franco acrescentou uma notoriedade social e política. Foi nomeado 1º Conde do Restelo título que depois transmitiria ao seu filho mais velho. Foi destacado político e antigo presidente da Câmara de Belém e (quando a primeira foi extinta) foi presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Viria até - imagine-se a ser o 3º presidente da Caixa Geral de Depósitos...







A intervenção política e social do 1º Conde do Restello foi muito satirizada pelo genial traço de Rafael Bordalo Pinheiro, algo que teremos de falar um dia destes. No entanto em 1903 já o velho Conde tinha falecido e por os seus dois filhos eram já os proprietários da Farmácia e quem lidou de perto com a rapaziada que fundou o nosso Clube.




O 1º Conde do Restello e alguns dos seus produtos inovadores. Pedro Augusto Francos foi o pai dos proprietários da Farmácia Franco quando o Sport Lisboa foi fundado.




Todos estes elementos permitem que possamos assim compreender bem a importância empresarial, política e social desta Farmácia Franco...


Mais do que uma prestigiada casa de comércio, a Farmácia Franco foi durante décadas, um local relevante de socialização na pacata e campestre Belém do final do século XIX e princípio do século XX. Era um local de poder, um local de encontro, de discussão de ideias.

Em 1903, já com o balanço desportivo entusiástico dado pelo Football Club, liderado pelos manos Catatau, a Farmácia foi o ponto de encontre para toda aquela rapaziada de Belém, da Junqueira e da Ajuda. E aí há que destacar o papel de mobilização fulcral que também tiveram os fundadores Daniel Santos Brito e Manuel Gourlade, funcionários da Farmácia Franco.

Brito e Gourlade foram os homens que inicialmente assumiram as tarefas organizativas do Sport Lisboa. Por cima da farmácia morava a família Rosa Rodrigues, tendo o mais velho, José Rose Rodrigues, sido nomeado o primeiro presidente do Clube. E assim Pelo menos durante o ano seguinte a Farmácia Franco foi o berço organizativo do nosso Clube.




A Farmácia Franco, berço organizativo do Sport Lisboa e Benfica.




Em 1903, os dois irmãos Franco e o Dr. Meireles, que eram da mesma faixa etária, já não tinham idade para futeboladas. Tinham no entanto espírito jovial e desportivo e por isso compreenderam e acarinharam a rapaziada mais nova, permitindo que treinassem no pátio da Farmácia e apoiando-os financeiramente, enquanto sócios protectores do Sport Lisboa.

É frequente haver a confusão entre o Dr. Meireles e António Meireles, jogador da 1ª categoria entre 1907 e 1911. É errado pois são dois homens distintos. António Meireles, o jogador nascido em 1888, era irmão de Abílio Meireles, um dos 24 fundadores. Nada a ver com o Dr. Meireles.

No caso do Dr. Meireles, para lá do apoio financeiro, a rapaziada beneficiava ainda do seu apoio médico para curar as mazelas sofridas durante os treinos e jogos. Ficou aliás tristemente célebre um episódio em que o nosso jogador António Couto fracturou uma perna durante um jogo em Carcavelos contra o CIF, em Março de 1907. O momento foi captado pela objectiva de Sena Cardoso, mostrando-nos a máscara de dor que o infortunado jogador tinha quando era transportado em maca por um conjunto de assistentes, entre eles o Dr. Meireles.



Fonte: História do SLB 1904-1954.



O Dr. Meireles, fruto do seu entusiasmo, prestígio e capacidades de trabalho, contribuiu ainda como dirigente desportivo para a melhoria da organização do futebol em Lisboa. Assim, em 1908 foi eleito para presidir à Liga Portuguesa de Futebol, antecessora da Associação Regional de Lisboa, numa altura em que também ainda não existia a Federação Portuguesa de Futebol.




Fonte: Hemeroteca de Lisboa.



Por motivos que desconheço, em 1909 o Dr. Meireles já não assumia esse cargo, tendo sido substituído pelo Dr. Januário Barreto, que anos antes tinha sido o primeiro presidente eleito da Historia do nosso Clube. Dessa Direcção constava ainda o Major Luís Carlos Faria Leal, ainda representando o Grupo Sport Benfica e que veio a ser uma das figura-chave na junção de 1908. O nosso Clube e as suas figuras cedo tiveram tiveram papel fundamental na implementação do futebol em Portugal.

A partir de 1908 não tenho mais informação sobre o Dr. Meireles. Em particular depois de 1910, depois da implantação da Republica, terá dado outro rumo á sua vida. Com 62 anos de idade era ainda um prestigiado médico Lisboeta mas também estava conotado com a sociedade monárquica. Terão sido tempos muito difíceis. Existem fontes que indiciam que ainda estaria vivo no ano de 1924, com 76 anos de idade. Espero que um dia apareçam mais informações que nos elucidem mais acerca da parte final da sua vida.



Honra e Glória ao Dr. António d' Azevedo Meireles